segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Os Sonhos na Jornada do Herói

Sempre me perguntam qual a importância das duas páginas, ao final da apostila da Jornada do Herói, chamadas "Pequeno caderno de sonhos, imagens, reflexões e temas recorrentes durante a Jornada". Esse 'caderno' de duas páginas para as jornadas efetuadas em finais de semana e de doze páginas para as jornadas efetuadas em dois meses, é separado em duas colunas, respectivamente 'registros verbais' e 'imagens'. Fica logo depois do fim da apostila de aula, separando as "quebras de estado" e a "bibliografia" da apostila de aula.

Qual seria a importância de anotar e verificar os sonhos, imagens e reflexões que possamos vir a ter ou desenvolver ao longo das nossas Jornadas?
O treinamento da Jornada do Herói é baseado na transdisciplinaridade entre vários ramos do saber, entre eles, a psicologia analítica - criada pelo psicólogo suíço Carl Gustav Jung - e, para ele, o sonho era "um teatro em que o próprio sonhador é cena, autor, produtor, ator, público e crítico" (Símbolos de Transformação, p.5) O sonho é o maior panorama possível sobre a nossa vida inconsciente.

Hypnos
Na Grécia Antiga o sonho era personificado na divindade Hipnos (também conhecido como 'Oneiros'), uma divindade alada que pousava sob a cabeceira da cama dos seres humanos e contava, por imagens, sobre a vida dos deuses e a relação dessa vida divina com a vida do sonhador. Segundo Corintha Maciel "Podemos considerá-lo um amigo que nos visita todas as noites e nos informa como estamos nos conduzindo em nossa vida, ou, ainda, como um repórter que nos trás notícias de nosso lado oculto."


O Sonho na Jornada do Herói
Ao longo da Jornada trabalhamos com símbolos e processos que ampliam nossa percepção acerca do que está se operando no nosso inconsciente. Seja entrando em contato com aspectos que renegamos para ressignificá-los, seja observando padrões que estavam até então imersos no "ponto cego" de nossas vidas cotidianas, seja mesmo através de sonhos e imagens que nos venham ao longo das dinâmicas e dos dias da Jornada.

O sonho é estudado aqui como veículo e criador de símbolos. Manifesta a natureza complexa, representativa, emotiva, vetorial do símbolo, assim como as dificuldades de uma interpretação. O sonho traz e cria os símbolos, que são as letras com as quais nosso inconsciente escreve as mensagens que nos importa saber sobre o mais íntimo de nossa existência.

"...símbolo da aventura individual, tão profundamente alojado na intimidade da consciência que se subtrai a seu próprio criador, o sonho nos aparece como a expressão mais secreta e mais impudica de nós mesmos. Ao menos duas horas por noite vivemos nesse mundo onírico dos símbolos. Que fonte de conhecimentos sobre nós próprios e sobre a humanidade, se pudéssemos sempre recordá-los e interpretá-los." - Frédéric Gaussen

Sonhos e seus estudiosos
Seguem algumas interpretações do que seja o fenômeno dos sonhos, sob a ótica de diferentes autores.

Para Sigmund Freud "o sonho é a expressão, ou a realização, de um desejo reprimido"

Para Carl Gustav Jung "o sonho é a auto-representação, espontânea e simbólica, da situação atual do inconsciente"

Para J.Sutter "o sonho é um fenômeno psicológico que se produz durante o sono, constituído por uma série de imagens cujo desenrolamento representa um drama mais ou menos concatenado"

Para Henry Amiel "o sonho é o domingo do pensamento"

Para Roland Cahen "...o sonho exprime as aspirações profundas do indivíduo e, portanto, será para nós uma fonte infinitamente preciosa de informações de toda ordem"

O que podemos retirar dessas definições é que o sonho independe da vontade e responsabilidade do sonhador. Sua dramaturgia noturna é espontânea e incontrolada. Nele, a consciência das realidades se oblitera, o sentimento de identidade se aliena e se dissolve.

Panorama da História do Sonho pelo mundo
O Egito Antigo atribuía aos sonhos um valor sobretudo premonitório: 'O deus (Amon-Rá) criou os sonhos para indicar o caminho aos homens, quando esses não podem ver o futuro'. Sacerdotes interpretavam nos templos os símbolos dos sonhos, segundo chaves interpretativas transmitidas pelos deuses. A oniromancia, ou a adivinhação por meio dos sonhos, era praticada em todos os lugares.

Para os negritos das ilhas de Andaman (Andamã), os sonhos são produzidos pela alma, que é considerada como a parte maléfica do ser. Sai pelo nariz e realiza ora do corpo as proezas de que o homem toma consciência em sonho.

Para todos os índios da América do Norte, o sonho é o signo final e definitivo da experiência. Segundo o mitólogo romeno Mircea Eliade "Os sonhos estão na origem das liturgias, estabelecem a escolha dos sacerdotes e conferem a qualidade de xamã, é deles que provêm a ciência médica, o nome que se dará às crianças e os tabus, eles ordenam as guerras, as caçadas, as condenações à morte e a ajuda a ser ministrada; só eles compreendem a obscuridade escatológica. Enfim o sonho confirma a tradição: é o selo da legalidade e da autoridade.

Para os Bantos do Kasai (bacia do Congo), certos sonhos são produzidos pelas almas que se separam do corpo durante o sono e vão conversar com outras almas, vivas ou mortas. Esses sonhos têm caráter premonitório referente à pessoa ou então podem consistir em verdaeiras mensagens dos mortos aos vivos, que interessam a toda a comunidade.

A classificação dos sonhos
As pesquisas analíticas, etnológicas e parapsicológicas dividiram os sonhos noturnos em seis categorias:

1. O sonho profético ou didático: trata-se de um aviso, mais ou menos disfarçado sobre um acontecimento crítico, passado, presente ou futuro; sua origem é frequentemente atribuída a uma força celeste.

2. O sonho iniciatório do xamã ou do budista tibetano de Bardo-Todol: é um sonho carregado de eficácia mágica e destinado a introduzir o homem num outro mundo por meio de um conhecimento e de uma viagem imaginários. Nos dois casos pode vir a incorporar um primeiro estágio de negação da carne-matéria. Nos dois casos, tanto para o xamã quanto para o monge budista, isso pode ser uma fase para um renascimento do sujeito em novo plano da experiência humana.

3. O sonho telepático: que estabelece comunicação com o pensamento e os sentimentos de pessoas ou grupos distantes. Muitos desses sonhos foram descritos por escritores e pessoas comuns antes da primeira e segunda guerra mundiais, por exemplo.

4. O sonho visionário: que transporta ao que H. Corbin chama de 'o mundo das imagens', e que pressupõe, no ser humano, num certo nível de consciência, poderes que nosa civilização ocidental talvez tenha atrofiado ou paralisado, poderes sobre os quais se encontram testemunhos entre os místicos iranianos. Neste caso não se trata de presságios ou de viagens, mas de visão.

5. O sonho pressentimento: que pressente e privilegia uma possibilidade entre mil outras.

6. O sonho mitológico: que reproduz algum grande arquétipo e reflete uma angústia ou uma potencialidade fundamental e universal.

Todos esses tipos de sonhos são passíveis ao longo da Jornada do Herói. Pois o material que trabalhamos são símbolos, e as "escavações internas" que operamos ao longo da Jornada, principalmente ao longo da Katábasis, rearranjam os mosaicos internos de nossa psique possibilitando que novas percepções venham à tona, percepções que nosso inconsciente nos comunicará pela sua linguagem natural, a linguagem dos símbolos.

Exemplos de sonhos de Heróis durante a Jornada
Tomei a liberdade de trocar os nomes dos sonhadores para resguardar suas intimidades.

- Estava numa festa com muitos conhecidos, um amigo de infância - que eu não via a mais de vinte anos - me chamou para dançar. No meio da dança começamos a beber e ele me contou que eu precisava girar menos, porque daquele modo iria cair mais cedo ou mais tarde. Quando acordei estava zonza, completamente desbaratada. Levantei e senti que eu precisava arrumar minha mesa de trabalho e por algum motivo não parei até encher dois grandes sacos de lixo com papéis velhos que eu guardava não sei porquê. minha mente clareou depois daquilo. - Márcia

- Sonhei que estava numa biblioteca subterrânea que subia para um morro, numa colina. Nessa colina vi um ser muito magro fazendo piruetas e acrobacias na beira de um abismo. Não consegui me aproximar dele, mas conversamos. Ele estava confiante e sorrindo e acabou pulando no abismo e eu tenho certeza de que ele não morreu. (Eu escrevi um conto sobre esse sonho de uma heroína aqui) - Lígia

Os sonhos e a Jornada
Usamos as imagens simbólicas que aparecem nos sonhos de nossos heróis como formas de pesquisa das informações que nosso incosciente julgue que sejam tão importantes a ponto de ele querer que nós nos dediquemos a conhecê-los melhor. Orientamos, na Jornada do Herói, sobre as formas como nossos Heróis e heroínas possam e devam anotar e pesquisar sobre seus sonhos, para que os avisos sejam percebidos, que as interpretações sejam possíveis e que os pedidos de nosso mundo interior não sejam negligenciados por nosso dia a dia celerado, nesse tempo que consome todos nós.

Renato Kress
Diretor do Instituto ATENA
Criador do treinamento A Jornada do Herói
Antropólogo e Cientista Político pela PUC-Rio, Trainer em Programação Neurolingüística pelo Deutsch Verband für Neurolingüistisches Programmieren e pelo International Association of NLP Institutes, pós-graduando em Psicologia Analítica pelo IBMR.

sexta-feira, 7 de outubro de 2011

O poder da narrativa: Medo midiático e a Jornada do Herói

"Qualquer um pode fazer história, só um grande homem pode escrevê-la." - Oscar Wilde, Aforismos

Quem observa os observadores?
A vida cotidiana é vivida numa sucessão interminável de fatos, dados, datas e acontecimentos. Vivemos sobrecarregados, atordoados e minimizados por televisão, computador, facebook, twitter, jornais, revistas, imagens e representações de uma realidade que já quase não vivemos senão por projeções. Projetamos nosso presente e deixamos que ele se alastre por diversos instantes que cronologicamente pertencem ao passado e a uma expectativa de futuro, de forma que viver efetivamente o presente é quase impossível hoje em dia.

Fuga do agora, vida em projeção
Não espanta que o budismo seja uma das filosofias religiosas que mais crescem hoje em dia, justamente porque prega a vida presente, o momento presente o aqui e agora que somos educados pela mídia a negligenciar constantemente. É impossível agir no passado ou no futuro, eu não posso, agora, ir dormir mais cedo ontem ou  resolver um problema semana que vem. Não é metafísica, é a constatação mais prática e óbvia possível! Só parece metafísica porque estamos submersos numa cultura de projeção, anestesiados, sem contato com o presente, incapacitados de fazermos nossa própria história. Há um jogo perverso de poder aí e é dele que trataremos nesse artigo.


Um mundo de coadjuvantes
Exercita-se, diariamente, a idéia de que devemos nos informar sobre o que ocorre ao nosso redor e, na nossa cultura, a forma mais corriqueira de informar-se é ler um jornal, revista ou ver o noticiário na TV. É apenas uma idéia cultural, não é uma realidade nua e crua. Se realmente nos atermos aos interesses em jogo nesses veículos de comunicação, perceberemos outras lógicas operando no que chamamos de "jornais", lógicas que cabe sempre a cada um, individualmente, estar a par para poder conscientemente concordar ou discordar, aceitar ler ou ignorar, manter sua assinatura vitalícia do jornal ou buscar fontes alternativas cujos valores sejam mais coerentes com os teus valores enquanto indivíduo.

A memória pessoal e a memória sobressalente
Mas antes de tudo é preciso conhecer os interesses que movem esses meios de comunicação e, para isso, podemos fazer da mesma maneira como fazemos com as pessoas ao nosso redor, observar suas ações ao longo do tempo para determinar a trajetória do caráter delas. Usar a nossa memória para analisar os veículos que se propõem a ser uma "memória sobressalente" sobre a nossa sociedade e cultura. Não é um exercício fácil, mas como tudo o que diz respeito à Jornada do Herói, o fácil não tem mérito, não tem esforço, não imprime uma marca densa na memória, que é o que queremos.

Mudança, direção e sentido
"A história humana é o resultado do conflito dos nossos ideais com as nossas realidades, e a acomodação entre ideais e realidades determina a evolução peculiar de cada nação." - Lyn Yutang, Com Amor e Ironia

 A vida é um processo de contínua mudança. Nascemos, crescemos, envelhecemos e morremos. O processo pode ser lento o suficiente para que tenhamos a impressão de uma consciência mais ou menos rígida de quem somos e do que somos, mas em efeito essa consciência muda com o tempo e o espaço.

Representamos o que na sociologia se convencionou chamar de "papéis sociais" distintos ao longo da vida e em diferentes meios, mas o "papel social", o que Jung denomina como "persona", faz parte e é também uma representação coordenada, socializada, do self, de nosso eu mais íntimo. Então se a persona muda essa mudança reflete também o grau de espectro aceitável dentro das manifestações possíveis do self. Ou seja: eu me adapto à sociedade e essa adaptação mostra também um pouco das minha escolhas, da minha autonomia e natureza íntimas. Minha "persona" é parte do meu "self", a escolha que efetuo sobre a parte minha que irá se aventurar e se expor ao mundo fala também de mim, do meu eu que escolhe e do meu eu que se esconde.

Quem é o narrador? Quem dá o sentido?
O que importa para compreendermos como a Jornada do Herói se implica no momento histórico que vivemos, com a disseminação do medo coletivo e difuso televisionado diariamente, é compreender como a autonomia do indivíduo é roubada, como o seu caráter libertário, sua liberdade, é cerceada pelos mecanismos que buscam deter o poder da narrativa, o poder de doar o sentido ao mundo.

"A história é o pesadelo do qual estamos tentando acordar." - James Joyce
Existe uma citação que diz que "A história é contada pelos vencedores" e também é uma questão prática, nada filosófica ou metafísica: quem permanece vivo vai lá e escreve, quem permanece no poder tem condições de se fazer ouvir mais e melhor. O que me leva a pensar, e se invertêssemos essa dinâmica? "Quem se faz ouvir mais e melhor permanece no poder", será que isso é verdade?

Quem conta a história dá o seu enfoque, dá a sua versão, enfatiza o que interessa e o que percebe. Aquilo que mais me atinge num determinado acontecimento vai ser aquilo de que mais me lembrarei quando relatar o acontecimento a alguém, sempre! O enfoque depende das minhas sensibilidades e interesses. Por isso sempre convido meus alunos a compreender os interesses dos que contam as histórias, principalmente quando eles vendem a ideia de que estão contando histórias "reais" ou por um prisma "imparcial".

Boicotes e ênfases, jogos de poder orquestrados
Penso sobre os institutos de pesquisa científica do Rio de Janeiro, as universidades, as ongs, oscips que realmente trabalham sério, diariamente, para construir um mundo mais digno e que só saem na televisão quando são alvos da "violência", do "pânico generalizado", do "terror" e outras das palavrinhas chaves que podemos contar aos milhares nos diários informativos impressos ou televisionados. Há um recorte aí. Há um silêncio programado sobre o que temos de bom, uma ênfase perversa em construir um discurso do mal crescente. Essa ênfase custa dinheiro e todo dinheiro é gasto com uma meta. A tinta do jornal, o combustível dos caminhões que levam eles a todos os bairros pela manhã, o salário dos jornalistas, o aluguel dos prédios de redação, o horário na TV, os ternos impecáveis dos apresentadores não são de graça. São caros e ninguém gasta dinheiro a troco de nada. Há um interesse aí e esse interesse recorta preferencialmente o medo.

Medo, manipulação e poder
"Um dos efeitos do medo é perturbar os sentidos e fazer com que as coisas não pareçam o que são." - Miguel de Cervantes, Dom Quixote


Manter uma população com medo é manter uma população com o que em psicologia se chama de "rebaixamento do nível mental". A capacidade cognitiva do sujeito sob o domínio do medo se reduz às possibilidades ditadas pelo cérebro chamado "reptiliano": ficamos sujeitos a pensamentos simples e rasteiros , prisioneiros da ideia principal do cérebro reptiliano ("fugir ou atacar") ficamos submersos em uma lógica dual como maniqueísmos e bipolaridades de todo o tipo como "bom-mau", "bem-mal", "herói-vilão", "nós-eles", "certo-errado" e nossa capacidade de organização e discernimento é rebaixada a quase zero. O mundo é mais complexo que os binômios "favela-asfalto", "dentro-fora", "hétero-homo" ou "homem-mulher", mas numa atmosfera permeada pelo medo é quase impossível perceber isso.

"O medo é um dos soberanos da humanidade. É o que possui o maior dominio de todos. Ele faz-nos embranquecer como velas. (...) Tem se criado mais medo do que qualquer outra coisa. Como força modeladora, não perde para a própria natureza." - Saul Bellow, Henderson, o Rei da Chuva.

Diante desse quadro nos é vendida (mesmo! eles cobram por isso!) a compreensão de que há um "quarto poder" em ação, a grande imprensa. Responsável, entre outros, por contar a história, por dar um sentido uma ênfase e um enfoque a essa história, por apontar "heróis" e "vilões", "culpados" e "inocentes", por colocar-se no papel da vítima indefesa que, através da própria vitimização, justifica um determinado posicionamento político cada vez mais agressivo, excludente e violento.

Quem tem medo de quê?
"O medo é o pior dos conselheiros" - Alexandre Herculano, Apontamentos para a história dos bens da Coroa e dos forais.

Creio, e talvez seja uma jogada um tanto quanto esperançosa, que o maior medo que pode haver é o medo do potencial criativo do ser humano. Todo o mundo que aí está, tudo o que hoje obedecemos e temos como verdade absoluta foi criado por homens. É o que o sociólogo Émile Durkheim chamava do "poder dos mortos sobre os vivos", o poder dos que primeiro criaram as regras e fizeram elas valer, da forma que for.

Quem narra, quem é narrado, quem dá o sentido?
O maior de todos os medos, a meu ver, é o medo que todos os sistemas que detêm algum poder têm de que esse potencial criativo do ser humano - a capacidade de ser o narrador da sua própria história - seja descoberto e ampliado. E se amanhã a "sensação de insegurança" veiculada pela mídia acordasse com uma certa "sensação de insegurança"? Se ela não fosse mais tão "óbvia". Se ao invés de ouvirmos à televisão desligássemos e ouvíssemos o som das ruas, se conversássemos com nosso vizinho ao invés de olharmos ele como "o outro", "o desconhecido", como uma ameaça em potencial? E se abandonássemos o papel de espectador e assumíssemos uma postura de protagonistas das nossas histórias? E se criássemos nossos próprios sentidos, e se fôssemos nossos próprios heróis?

"A única coisa de que devemos ter medo é o próprio medo." - Franklin Delano Roosevelt, Discurso de posse.

Texto: Renato Kress
Diretor do Instituto ATENA e
Criador do treinamento "A Jornada do Herói®"
Conheça mais do treinamento A Jornada do Herói®

terça-feira, 4 de outubro de 2011

Heroínas: Desafios e integração na Jornada

Ártemis
A Jornada e a Mulher

Quando penso nas várias edições da Jornada do Herói, desde os tempos de 2005, quando a primeira delas foi efetuada no Flamengo, no Rio de Janeiro, em parceria com o INAp, observo uma singularidade interessante: a maior parte dos grupos é composta por Heroínas, mulheres sábias, corajosas, verdadeiras guerreiras, em busca do maior desafio: vencerem-se a si mesmas, descobrirem e manterem suas identidades de mulheres, mães, amantes, filhas, profissionais, esposas e amigas numa sociedade em que a feminilidade só é exaltada quando vinculada ao consumo.

As experiências femininas na Jornada sempre são impressionantemente enriquecedoras para o homem que souber observar, aprender e respeitar essa dinâmica complementar, essa vivência integradora. O olhar atento e a atitude de aprendiz leva sempre ao melhor aproveitamento, em ambos os sexos.

Afrodite
Animus, o caminho da integração feminina
A psique humana opera por pares complementares, opostos que funcionam como balizas para o fluxo da energia psíquica, que é o que mantém nossas mentes em funcionamento, nossas idéias chegando e indo embora, nossos sonhos à noite. O homem naturalmente tende a ter uma compreensão mais masculina da realidade e o inconsciente (numa situação normal) tende a criar um pólo oposto, compensador e integrador dessa visão unilateral da realidade, a Anima. O mesmo ocorre com a mente feminina. Jung chamou às manifestações de complementariedade masculina e feminina do inconsciente respectivamente de Animus e Anima.

Na famosa obra "O Homem e Seus Símbolos", Marie Louise Von Franz define magistralmente os conceitos de Anima e de Animus. Por hora nos concentraremos no Animus, a contraparte masculina de uma psique feminina, ou, segundo Von Franz, "a personificação masculina do inconsciente da mulher". Como todas as manifestações do inconsciente, o Animus é simbólico, ou seja, dual, dialógico, possui uma dimensão positiva e uma dimensão negativa.
Atena

Enfrentando o Dragão
O Animus pode se manifestar como uma idealização das características paternas da mulher, o que geraria um afastamento de qualquer relacionamento humano. É aquela velha fórmula do "nenhum homem é bom o suficiente para a minha filha" (na mente do pai) transubstanciada para "nenhum homem é bom o suficiente" (na mente da filha). Nessa fase pensamentos oníricos, desejos e julgamentos definem "como uma relação deveria ser" e afastam a mulher da realidade da vida, que não se adequa a padrões pré-estabelecidos, mas é plástica, mutável. Resta, na Jornada do Herói, o reconhecer e o enfrentar essa imagem, retirando dela o potencial para uma vida psíquica saudável.

O Barba Azul
"O homem talvez seja apenas o monstro da mulher e a mulher o monstro do homem" - Diderot, O Sonho D´Alembert

Hera
Dentro desse aspecto do Animus temos, por exemplo, a figura do Barba Azul - que assassinava em segredo todas as suas esposas e guardava seus cadáveres num armário (ou num quarto) que nunca deveria ser aberto. Engraçado que a chave desse armário (ou quarto) era confiada à nova esposa, com a ordem expressa de que ela nunca abrisse a porta. Lembra a história da caixa que Zeus entrega a Pandora com a ordem de que nunca fosse aberta, junto com a chave, é claro! Esse tipo de personagem é característico de um Animus repleto de reflexões semiconscientes, frias e destruidoras. Um tipo de pensamento calculista, malicioso e afeito a intrigas.

Trabalhar o Animus, tarefa da Jornada
"Só querer se relacionar com aqueles que se aprovam em tudo é quimérico, e é o próprio fanatismo" - Alain, Considerações

No mais íntimo murmura o Animus não trabalhado: "Você não tem salvação. Para que lutar? Não vale a pena!". Essas manifestações retrógradas do Animus servem para sinalizar a necessidade de enfrentarmos de frente suas necessidades e demandas, caso contrário a mulher estará presa a sentimentos crescentes de passividade, paralisação dos sentimentos, profunda insegurança ou uma sensação de nulidade e vazio abismais. Um Animus não trabalhado, em geral, é um fator de alienação psíquica, que desvia a mulher do seu potencial criativo.

Selene
A Jornada do Herói é um processo que, para a mulher, descortina o que lhe é próprio e íntimo no caminho da busca e integração da intenção positiva do Animus. Redimensiona-se a influência psíquica do Animus para que o foco seja, então, suas intenções positivas e essas são trabalhadas na Jornada, rumo à integração na consciência. É onde o treinamento alinha metas (projetos para o futuro) e valores (alicerces morais e históricos da biografia única das nossas heroínas).

Aspectos positivos do Animus
"Há tanta diferença entre nós e nós mesmos quanto entre nós e o outro." - Montaigne, Ensaios.

Trabalhando com o Animus, lidando com suas limitações e desenvolvendo suas grandes potencialidades, as heroínas da Jornada desenvolvem uma atividade criadora e rica de sentido. Começam a doar sentido para o universo ao seu redor e a emanar significado, transformando a vida num processo psiquicamente sustentável, desafiador e criativo.

Gaia
Um grande número de mitos e contos de fadas conta a história de um príncipe transformado por uma feiticeira em animal ou monstro, que é redimido pelo amor de uma jovem, processo que simboliza a integração do Animus na consciência.

Heroínas: mulher e plenitude
"Deus só criou as mulheres para domar os homens." - Voltaire, O Ingênuo.

A atenção consciente que uma mulher tem de dar aos problemas de seu ânimus toma muito tempo e envolve uma quantidade considerável de energia e sofrimento. É justamente no tempo e no sofrimento, como na escolha em trilhar o caminho de maior descoberta e aprendizado, que reside o mérito. É aí, então, que podemos chamá-las de "Heroínas", porque desenvolveram não só a Areté - a "superioridade" caracteristica de quem integrou partes conflitantes de sua psique, não eliminando os conflitos, mas elevando-os a um novo patamar - e a "Timé" - a "honra" característica de quem soube levar esse aprendizado para o dia-a-dia, para o convívio saudável e engrandecedor da sociedade e dos que as cercam.

Heroínas são essas mulheres incríveis que enfrentaram essa realidade em lugar de se deixar dominar por ela e tornaram o Animus um companheiro precioso que vai trazer como dote a esse "casamento sagrado interior" uma série de qualidades masculinas como a iniciativa, a coragem, a objetividade e a sabedoria espiritual que transcendem a dicotomia frígida da batalha dos sexos externa e da resistência à integração do Animus, interna.

Heroínas são aquelas que ouvem o chamado interno à aventura de si mesmas e respondem integrando, assimilando o que seu Animus tenha de positivo e utilizando essas capacidades como estados de recursos para os maiores desafios que surgirão, sempre, adiante.

Texto: Renato Kress
Imagens: Google Imagens, Deusas e manifestações do feminino