domingo, 18 de setembro de 2011

Jornadas sobre a Jornada

"Os homens sobem pelo mesmo caminho pelo qual os deuses descem. Só com essa diferença: de cima para baixo, despem-se os deuses: de baixo para cima, despem-se os homens. A meio caminho, deuses e homens se encontram, mais ou menos vestidos, mais ou menos despidos. A meio do caminho, homens se reconhecem nos deuses e os deuses nos homens. A meio do caminho, deuses saúdam os homens como seus iguais. - Eudoro de Sousa"

O caminhar na Jornada, perspectivas e leituras
Ando tendo conversas maravilhosas na Alemanha com um amigo interessantíssimo. Químico profissional, instrutor de Kung-fu, estudioso de I-ching, treinador em Constelação Sistêmica, alquimista por intuição, amigo por destino, Hans é um cara fenomenal com quem a conversa flui naturalmente por horas fazendo crer que meu alemão é quase compreensível. Uma e outra e outra vez a conversa vem, volta e versa sobre o mesmo apaixonante tema: A Jornada do Herói.

Temos visões diferentes acerca da Jornada, embora perfeitamente compatíveis. Vivemos diferentes mapas, diferentes realidades e, mesmo quando estas se assemelham, diferentes leituras culturais, pessoais, etárias sobre a mesma realidade. Abrindo mão da possibilidade de cristalização do meu ego e tendo bons e afetuosos ouvidos para compreender suas leituras é possível ampliar meu universo e é disso que se trata a vida, a Jornada: aprendizados, constantes.


A construção do ego
"Happe" (Hans-Peter) como ele gosta de ser chamado, vê a jornada como uma forma de construção do ego, de enfrentamento das regiões abissais de nosso inconsciente como uma forma de estruturar um ego sólido, forte, um ego "heróico" o suficiente para enfrentar as intempéries de um universo competitivo, intensamente adverso às investidas de nossa forte vontade. É uma leitura linda, muito inspirada na leitura de Nietzsche e Schopenhauer acerca da idéia de "Vontade" e do choque inevitável da vontade do indivíduo contra um mundo de vontades adversas. Talvez uma leitura típica de uma "visão de mundo" (weltanschauen) alemã.

A dissolução do ego
"Dissolver o ego", essa máxima oriunda das experiências íntimas mais profundas das filosofias e religiões orientais (embora presente também na alta experiência existencial ocidental de um Meister Eckhart ou de um Joseph Campbell), não se encontra - para Happe - na Jornada, visto que para isso é necessário abandonar a identificação com a idéia de "Herói" ou com o ideal de "Ego heróico", típico do fim da adolescência e da idade adulta.

Grandes e pequenos ciclos
A diferença, a meu ver, está na compreensão operada em "grandes ciclos" - uma vida inteira, por exemplo - ou em "pequenos ciclos" - fases da vida, uma década, um ano, um semestre, uma semana, um dia, um ato. Há um antigo e conhecido ensinamento oriental que versa sobre a impossibilidade de encher-se uma xícara já cheia: precisamos esvaziar a xícara para colocar um novo conteúdo, precisamos beber, incorporar as idéias, a própria substância da qual o conteúdo da xícara está impregnado ou jogar fora um chá velho, antigo, para podermos ter, novamente, um continente a preencher, mas a estrutura da xícara é sempre a mesma. Aí reside a diferença entre a concepção de ego - chá - e a compreensão de "self" (si-mesmo) - xícara.

Entre o chá e a xícara
Podemos trocar de xícara, ampliar nossa concepção e nossa percepção de quem somos intimamente e do potencial que reside em nós, mas não podemos dispender de uma xícara, com ou sem chá. A Jornada do Herói não se foca no ego, na quantidade ou qualidade de chá, mas no Self, na qualidade da nossa compreensão sobre quanto chá suportamos e quanto precisamos nos desfazer, seja eliminando crenças limitantes - jogando um chá velho fora - ou vivenciando experiências de aprendizado e engolindo, deglutindo nossas próprias certezas para incorporarmos nosso processo, nossa vida, nossa experiência, nossas escolhas e, naturalmente, eliminar os excessos.
"Em seu sonho, Jacó vê uma enorme escada,
 unindo a Terra ao Céu, e pela qual sobem
 e descem Anjos, (na realidade Seraphim, Chatioth
Ha Qadesh), Santas criaturas vivas, atarefadas
com os afazeres divinos no mundo
 dos arquétipos.
E Jacó 
exclama: O Senhor está
neste Lugar e eu não sabia." - Graziella Marraccini

Entre Deuses e Homens
Quando Deuses despem-se e reconhecem-se nos Homens e quando Homens despem-se e ascendem ao encontro dos Deuses tratamos de uma troca de experiências, de percepções, vivências e energia. Para que haja uma troca é necessário que se estabeleçam dois pontos: emissor e receptor, ativo e passivo, yang e yin,   passado e futuro, dois pólos através dos quais a energia possa fluir.

Quando homens (com "h" minúsculo) permanecem vestidos com suas certezas, com suas compreensões de mundo inebriadas com as certezas do passado, certezas ancestrais de que "vivemos no melhor dos mundos possíveis", de que "tudo o que há de bom, interessante, útil, verdadeiro ou belo já foi feito", permanecem na condição de homens, de reincidentes, meros reprodutores inconscientes de padrões pré-determinados, pela família, cultura, sociedade, época, meios sociais. Quando homens despem-se dessas certezas e começam a perceber que o mundo que existe foi criado e, como tal, pode ser recriado (não sem esforço e trabalho, sem pensamento e ação, sem energia e foco, sem disciplina e mérito) aí sim, eles começam a tornarem-se Homens, a viver o potencial, a partícula de divindade, de entidade criadora de que são parte, então encontram, a meio caminho, os deuses, que abriram mão de sua onipotência distante para encontrarem-se com os grandes Homens, aqueles capazes de canalizar essa energia arquetípica em prol de uma (re)criação do universo. É então que deuses e Homens se encontram.

Mergulhos, perdas, encontros
Pensar a Jornada como um processo de construção do ego é pensar a jornada em termos de Paidea, de início, de fortalecimento da consciência ("coagulatio", em termos alquímicos) para que possamos dissolver ela no manancial interminável da nossa inconsciência e das possibilidades do mundo ("solutio", em termos alquímicos), mas fixar-se nesse ponto é abrir mão de encarar a verdadeira e profunda jornada da Katábasis, do mergulho na sombra de nós mesmos. Lembro que escrevi, a pouco tempo, um texto sobre o simbolismo do sol, como simbolismo do eixo e do centro. Quando nosso eixo é o sol de nosso próprio sistema criamos uma multidão de sombras contra as quais mediremos nosso brilho e quanto maior o nosso brilho, claro, maior a nossa sombra. A jornada é ininterrupta, os desafios, em espiral, se adequam às nossas capacidades, ao nosso crescimento. A vida é mudança, incremento e desafio, para quem se atreve a ser um Homem, um Herói.

Mais uma vez ficamos com a genialidade de um Guimarães Rosa: "O que aprendemos mesmo na vida é a sempre fazer maiores perguntas."

Renato Kress
Diretor do Instituto ATENA