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segunda-feira, 23 de abril de 2012

Superioridade e Honra: Caminhos, descaminhos, estratégia e valores


"Existem vários caminhos. Há o Caminho da Salvação pela Lei do Buda, o Caminho de Confúcio que governa o Caminho do Aprendizado, o Caminho da cura como médico, como poeta ensinando o caminho de Waka¹, chá², arco e flecha³ e muitas outras artes e escolas. Cada homem pratica de acordo com sua inclinação." - Miyamoto Musashi, Livro da Terra, in: Livro dos Cinco Anéis (ou Livro das Cinco Esferas)

Para Musashi o caminho do Guerreiro é o caminho que leva à aceitação resoluta da morte. A morte, para uma cultura taoísta como a de Musashi, é a aceitação da eterna impermanência. Impermanência de nossos corpos, que envelhecem desde o dia em que nasceram, de nossas situações cotidianas que se transmutarão em outras, de nossa compreensão de nós mesmos e do universo que nos cerca. Para quem saiba ler o Livro das Cinco Esferas, tornar-se um guerreiro, ou melhor, assumir o caminho do guerreiro, é aceitar a mudança que se espera de toda ordem constituída. A vida é passagem e quem se perder nas margens do rio da vida na busca pela eterna infância, juventude ou mesmo eterna velhice, não pode assumir esse caminho, viver esse fluxo.

O Caminho da Estratégia

Os praticantes do caminho do guerreiro são conhecidos como "mestres da estratégia". A aceitação resoluta da morte, num contexto estratégico, nada mais é do que um bom exercício do que no ocidente denominamos "trade-off", abrir mão de algo (deixar algo morrer) para obter algo de maior valor para nossas vidas. Quando uso o termo "Valor" quero dizer "significado" e não explicitamente "dinheiro", "posição" ou "poder", a não ser que "dinheiro", "posição" e "poder" sejam seus valores primários. Valor é tudo aquilo que traz maior significado à sua vida.

"Recentemente têm surgido no mundo pessoas chamadas de estrategistas, mas no fundo não passam de esgrimistas." - Myiamoto Musashi

Vivemos num universo onde a mídia cerca e explode em multicores quando um envolvido em uma disputa comercial, industrial, política ou financeira atinge uma vitória. Tendemos a atribuir ao sujeito da vitória, ao vitorioso, títulos de estrategista, de grande guerreiro e de líder etc. Podemos até acreditar que livros como "A Arte da Guerra" de Sun Tzu estejam ultrapassados, que seus critérios de "vencer sem guerrear", "vencer o inimigo por cansaço" antes mesmo de entrar em batalha, "cooptar as mentes dos soldados do inimigo antes de enfrentá-los" etc estejam ultrapassados, afinal, o que as grandes revistas de negócios, os grandes livros e os grandes gurus nos apresentam é um mundo de grandes líderes em disputa acirrada, clara e aberta uns contra outros. Mas será que essas revistas não têm nenhum interesse? Será que elas não são patrocinadas por nenhum interesse? Quem paga a moda da ultracompetitividade? E paga com recursos infindáveis, ou com recursos finitos? E se esses recursos são finitos, porque se investe nisso?

Essência e aparência

O mundo da mídia pode se esgoelar para vender a cada um de nós a idéia de que a competição acirrada, a hipercompetitividade a qualquer custo é o caminho do "líder", do "guerreiro", do "estrategista", mas ele não pode negar o fato de que a Google, por exemplo, tem 4 décadas a menos do que a TimeWarner e tem o lucro líquido quase duas vezes maior. A diferença? A TimeWarner é a maior difusora da ideologia da hipercompetitividade no mundo e a Google não vende, mas efetivamente vive a ideologia da hipercolaborativiadade, dentro e fora da empresa. A quem interessa que nós permaneçamos sempre competindo, nos exaurindo, nos cansando, dispersando energia e recursos?

A aparência da hipercompetitividade não encobre a essência de que quem está na frente não compete, cria! Só me interessaria que meus "concorrentes" competissem se eu vivesse no eterno medo, no pânico completo de que, uma vez deixados em paz, eles pudessem "crescer" e "me passar". Essa é a ênfase normal na mente de um covarde, não de um guerreiro. A mídia corporativa, tal qual a mídia social, incentiva a covardia pela incitação do medo. Só quem é muito inseguro acerca das próprias potencialidades, das próprias habilidades e do próprio conhecimento consegue viver nessa lógica. Não é o caso de um guerreiro como exposto por Musashi.

A venda e os critérios para a compra


"Se observarmos o mundo, veremos artes à venda. Os homens usam equipamentos para vender a si próprios. É como se a noz valesse menos que a flor. Nesse tipo de 'Caminho da Estratégia', tanto aqueles que ensinam quanto aqueles que aprendem o caminho ocupam-se de exibir a técnica, tentando apressar o desabrochar da flor. Falam 'deste Dojo' e 'daquele Dojo'. Estão à cata de lucros. Alguém afirmou uma vez: 'A Estratégia Imatura é a causa do sofrimento'. É verdade." - Miyamoto Musashi

Impressionante como parece que Musashi viveu nesse mundo, não? É natural aos que captam a essência do ser humano. Por isso determinadas leituras se tornam clássicos, porque seus autores captaram algo de próprio da natureza humana. A palavra "Dojo", significa "escola". E não vivemos hoje uma difusão de escolas e métodos de liderança, estratégia etc? E só há uma maneira eficiente de verificar a validade dessas escolas e métodos: aproximarmo-nos delas cautelosamente nós mesmos (pouquíssimo e raramente pela mídia, ela é paga para agir e age segundo quem paga) e observarmos o que seus representantes escrevem diretamente, o que falam e o que fazem, observar-lhes a coerência interna e, principalmente, se seus valores e crenças condizem com os nossos valores e crenças.

Uma das maiores compreensões para o ser humano, talvez o grande discurso desse milênio, é a aceitação da diferença. Aceitar que a diferença existe e que não somos todos iguais é compreender, entre outras coisas, que há espaço para a diferença e que a "técnica" que funciona para o meu vizinho ou para o meu colega pode não ser a mesma que funciona para mim. É o ensinamento básico par qualquer iniciante em Programação Neurolingüística (pnl): "O mapa não é o territorio", ou seja: minha representação da realidade não é  realidade, sim uma representação. Outras pessoas terão outras representações que não são melhores nem piores que a minha, apenas diferentes e, nessa diferença, possuem um grande potencial de enriquecer o nosso mapa.

Toda conduta humana está alicerçada em valores. Ora, uma técnica de liderança, uma "escola" de estratégia empresarial treina e às vezes até impõe uma determinada conduta. É necessário observar bem esses valores, para termos certeza se eles efetivamente são congruentes com os nossos ou não. Do contrário incorreremos em adotar uma postura esquizofrênica em nossas vidas e, mais cedo ou mais tarde, isso desembocará num desequilíbrio físico ou mental.

Esteja sempre atento aos interesses e aos valores por trás do que "consumir" mentalmente, fisicamente, financeiramente. É a sua integridade e a sua possibilidade de crescimento sadio ou patológico (doentio) que está em jogo.

Artigo de: Renato Kress
Diretor do Instituto ATENA
www.institutoatena.com
Criador dos cursos
A Jornada do Herói
e
A Arte da Guerra

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¹ Waka: A palavra significa "Canção do Japão" ou "Canção em Harmonia", que designa um poema de trinta e duas sílabas.
² Chá: A arte de beber chá seguia um ritual simples até hoje ensinado nas escolas. Ficou conhecido no Ocidente como o ritual do chá, feito basicamente por duas pessoas.
³ Arco e Flecha: Assim como o chá e a espada, a arte do arco e flecha é praticada em um ritual. Foi a principal arma do samurai nos períodos Nara e Heian, sendo que, mais tarde, cedeu lugar à espada. Contudo, não perdeu sua importância cultural, aparecendo habitualmente nas ilustrações que representam o aparato portado pelos deuses. O deus da Guerra Hachiman costuma ser representado como um arqueiro.

terça-feira, 10 de abril de 2012

A Mente do Herói na Jornada

Trabalhar com a Jornada do Herói é ter a fantástica possibilidade de observar, dia a dia, a maravilhosa potência dos conteúdos da mente e buscar criar - esforço e tarefa heróica - um fluxo criativo e orientado de ações com essas energias. Ações orientadas por uma meta bem estipulada. Para que as ações ocorram, para que os heróis da Jornada possam liberar a energia psíquica necessária para transformar em ato as decisões e planificações efetuados no início da Jornada, é preciso que façamos o mesmo caminho que todo herói em toda mitologia mundial fez: liberar o potencial da libido(energia psíquica) no inconsciente.

As águas retidas
Em várias tradições mitológicas ao longo da história da humanidade veremos a questão da retensão e liberação das "águas do mundo". Na Índia esse é o tema central da mitologia de Indra (o equivalente hindu do Zeus grego): O dragão-serpente Vritra rompe o fluxo natural da vida no universo ("Rita" é o nome desse fluxo que ele rompe) ao prender as "águas do mundo" e então Indra, a divindade do raio, do trovão e das tempestades, tem de abatê-lo com um raio para que o fluxo das águas seja liberado e restabelecido.

É preciso uma iluminação (raio) orientada da consciência (Indra) para que o fluxo poderoso da energia psíquica (águas primordiais) possa jorrar naturalmente e começar a recriar e restabelecer a nossa energia criativa e o nosso contato com a dinâmica natural do movimento da nossa psique. É a isso que as mitologias ao redor do mundo chamam de restabelecer a "Ordem do Mundo". Por isso Zeus faz o mesmo derrotando o dragão-serpente Tífon e, posteriormente, Apolo, um dos filhos de Zeus, faz o mesmo derrotando o dragão-serpente Píton, filho de Tífon. São gerações efetuando o mesmo gesto simbólico de salvaguardar seu poder de contenção e liberação das energias que passam pelo eixo do ser.

Quando Zeus mata Tífon - depois de ter seus tendões dos calcanhares arrancados por essa criatura e recosturados por seu filho Hermes - ele restabelece a nova ordem no mundo, onde ele se coloca como governante. Psiquicamente é a consciência adquirindo poder sobre a dimensão inconsciente e orientando sua iluminação e ação através do foco (raio).

Esse processo ocorre na Jornada do Herói de forma constante através de suas quatro etapas: Paideia, Katábasis, Anagnosis e Apoteosis.

Paidéia, a dúvida elementar
Na Paidéia, fase que chamamos também de "educação iniciática" aprendemos a olhar o mundo com novos olhos e a perceber os valores e crenças que são as fundações do nosso mundo e da representação de universo que fazemos. Lembrando que, de acordo com a programação neurolingüística, nós não reagimos ao mundo e sim à representação que temos desse mundo. A realidade, em si, não é acessível a nós nem a ninguém. Vemos o mundo através das nossas experiências nesse mundo, das nossas próprias crenças e valores, nos nossos filtros internos, da nossa cultura e da forma como fomos socializados para viver em sociedade. O fator mais importante da Paidéia, além de aprender as técnicas que serão necessárias ao longo da jornada nas demais fases, é que possamos começar a compreender que esse mundo em que vivemos foi criado por seres humanos que já não estão entre nós e que a nós cabe, hoje em dia, duvidar de forma saudável de que esse seja o melhor dos mundos possíveis. Através da dúvida surgirá a brecha para toda a criação a ser efetuada posteriormente.

É na brecha que a dúvida ria no solo das certezas cotidianas que plantaremos a semente do amanhã.

Uma das técnicas primárias da Paidéia e uma das mais importantes é justamente estabelecer, por escrito através de um caminho de perguntas bem detalhadas, a meta que temos para o curso ou para a nossa Jornada pessoal. É como definir o código genético da semente, a forma pela qual ela irá crescer.

Katabasis, penetrando nas fundações
Na Katábasis, fase que chamamos de "mergulho nas trevas", penetraremos nas fundações dessas crenças nossas e sociais, pessoais e culturais, laborais e lúdicas que formam a nossa concepção de mundo. Ali perceberemos a intenção positiva dos comportamentos que já não são mais compatíveis ou congruentes com a nossa vida atual. É natural que alguns comportamentos que funcionavam no passado não sejam mais funcionais no presente, mas ainda assim eles detêm uma certa intenção positiva, seja ela de "proteger", "salvaguardar", "manifestar suas emoções", "delimitar o seu espaço e os seus limites" e por aí vai. Na Katábasis, observando o que queremos usar para edificar nossa Jornada pessoal e o que podemos resumir à intenção positiva e descartar as cascas comportamentais que já não condizem com nossa idade, vida ou atmosfera, podemos começar a reintegrar e fortalecer as fundações desde abaixo.

Nesse mergulho nós revisitamos conteúdos internos nossos e reintegramos cada um deles, ou pelo menos suas intenções positivas ao que pretendemos para daqui por diante.

Anagnosis, o que vês ao nascer
Na Anagnosis, fase que também chamamos de "conhece-te a ti mesmo", usamos arquétipos e mitos gregos como filtros ou mentores para observar nossa Jornada, nossas metas, projetos e planos. Através desse filtro energético a mente do herói começa a reconectar-se à sua vida do cotidiano, mas de uma forma completamente nova, plena de energia e discernimento. O mergulho na Katábasis ampliou o gradiente energético, liberando a libido para que possamos usá-la em favor de nossas próprias demandas, mas de forma criativa e equilibrada. Trabalhamos especificamente a questão do equilíbrio dinâmico na execução de nossas técnicas nessa fase da Jornada. Equilíbrio dinâmico é a noção de que não precisamos estar estáticos ou imoveis dentro de um estado paradisíaco da mente, mas que na avalanche de atos e circunstâncias do dia a dia precisamos "dançar ao som da música" sem nunca perdermos a consciência de nosso eixo e de nosso foco.

Na Anagnosis a mente criativa enraíza-se para dentro do cotidiano, levando consigo de forma potencializadora, criativa e centrada a estrutura do dna criada na nossa meta estabelecida na Paidéia, na primeira etapa de nossa Jornada.

Apoteosis, encontro com os deuses
Na Apoteosis extravasamos nossas energias para o resto do mundo. A energia telúrica (da terra) que remexemos e "cozinhamos" na Katábasis e que nos impulsionou para a consciência de uma forma mais íntegra e coerente para renascermos na Anagnosis, onde usamos essa libido (essa energia psíquica) como uma tinta para tatuar os atos de nosso dia a dia como se deixássemos a cada passo um pouco de nós mesmos e reconstruíssemos o universo ao nosso redor não só à nossa imagem e semelhança, mas observando nos olhos dos que nos cercam tendo a consciência de que observamos os demais deuses responsáveis pela manutenção desse firmamento em que estamos. São técnicas que ampliam e excitam o que temos de criativo, potencializador, amoroso e tolerante em nós.

É essa a viagem da mente do Herói na Jornada, um mergulho profundo que antecede um salto quântico.

Texto por: Renato Kress

segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

Entrevista sobre a Jornada do Herói® - Parte um.

Qual a utilidade do treinamento A Jornada do Herói?

Renato Kress (RK): Olhe ao seu redor agora. O que é "natural" e o que é "criado" pelas mãos, idéias e sonhos dos homens? Pense em termos de comportamentos, instituições sociais, roupas, idiomas, sotaques, alimentação, formas de sentar, comer, amar. Quase tudo é criado. Beber em um copo ou em uma tigela é uma escolha cultural. Muitas vezes não nos damos conta disso porque estamos imersos numa cultura determinada e achamos que todo o mundo é ou "deveria ser" assim. O problema dessa questão é que muitas vezes, na correria do dia a dia, não nos damos conta de que vivemos sobre a tirania dos mortos. A utilidade maior da Jornada do Herói é trazer a responsabilidade sobre os nossos atos, nossas escolhas e atitudes para nós mesmos, é assumirmos o fardo de sermos os criadores do sentido para a narrativa das nossas vidas. Existem várias outras aplicações práticas da Jornada em criatividade, pensamento estratégico, gestão empresarial, reestruturação de vida, mas o principal está sempre na escolha, na responsabilidade, no mérito.

Você falou sobre "tirania dos mortos", o que é isso?

Émile Durkheim
RK: Tirania dos mortos é uma expressão que saiu agora, mas a base dela é uma expressão do que o Sociólogo Émile Durkheim chamava de "poder dos mortos sobre os vivos", que não tem nada de sobrenatural, é só a concepção de que tudo o que vivemos, as instituições, idéias e conceitos em que acreditamos, as regras que regem nosso comportamento social, cultural, familiar, afetivo etc, foram criadas por pessoas que já faleceram a muitos anos, pessoas que viviam numa sociedade completamente diversa da nossa, com problemas e questões completamente diferentes e, ao mesmo tempo, muito semelhantes.

A tirania dos mortos é essa situação social em que vivemos nossa vida segundo as regras ditadas por outras pessoas, especificamente pessoas que já faleceram. É quando jogamos (o termo em psicologia é "projetamos") a autonomia sobre nossas vidas para os "costumes", "leis", "regras" que foram criadas e ditadas há anos por outras pessoas, que viviam literalmente em outro mundo. Parte importante da Jornada do Herói, na verdade a primeira parte do treinamento - chamada 'Paidea' -, é justamente deixar isso bem claro para os nossos heróis. Fazer uma pergunta cuja resposta não pode ser um constrangimento interno: "Quem é o eixo-doador de sentido para a narrativa da sua vida?".

Isso quer dizer que o treinamento é contra as tradições, costumes, leis?

RK: Claro que não! De forma alguma! Isso quer dizer que o treinamento busca ensinar duas coisas importantíssimas: Autonomia e responsabilidade. Para sermos autônomos, para pensarmos por nós mesmos e para podermos tomar decisões baseadas em nossos crivos internos precisamos primeiro perceber o que é nosso e o que é imposto "de fora", seja pela sociedade, família, ambiente de trabalho, amigos, convenções sociais... percebendo o que é imposto de fora, por quem e, principalmente, porquê é imposto - a razão daquela imposição de idéias, de pensamentos e comportamentos, de modismos, de opiniões -, é que poderemos decidir aceitar ou não aquela idéia, agir ou não de acordo com aquele comportamento. Não há nada de errado em seguir um comportamento tradicional, desde que essa escolha tenha sido completamente sua, consciente e clara. Só aí há o mérito.

O mérito de um civil de sobe as escadas de um prédio em chamas para salvar uma criança pode ser considerado maior que o de um bombeiro que tenha feito a mesma coisa. Porque ele não tinha o treinamento necessário, porque ele não tinha acesso ao material necessário, mas principalmente porque não se esperava isso dele. Esperava-se que ele ligasse para os bombeiros, que ele se importasse primeiro consigo mesmo do que com a criança, que ele se acovardasse diante das chamas... heroísmo é medido em mérito e mérito é medido por essas expectativas, também.

Enfim, nada contra as tradições. Só a favor da escolha consciente em segui-las ou não. Mesmo saber quando romper uma tradição - ainda que mantendo muitas das suas orientações iniciais - é um ato divino. A obra maravilhosa do Rabino Nilton Bonder - "A Alma Imoral" - brincando filosoficamente entre os binômios "tradição-traição" trata genialmente do tema. Em certo sentido o carnaval é uma "traição" à "tradição" dos dias santos, mas é completamente necessário, inclusive para a manutenção da saúde mental de uma sociedade. Rigidez em excesso cristaliza em posturas como o nazismo da mesma forma como fluidez em excesso causa uma letargia enorme na sociedade, que não se levanta e não combate por nada, mesmo quando a causa é justa. Já dizia Apolo, em seu Oráculo na cidade de Delfos: "Méden Ágan" (nada em excesso).

Como era essa questão do Oráculo de Delfos? Isso tem a ver com a Jornada do Herói?

RK: Tem sim. Tudo a ver. Em um sentido simbólico. A palavra símbolo, vem do grego 'symbolón' que era um disco pequeno com duas partes, como se fosse um medalhão. Esse 'symbolon' teria frente e verso, como uma moeda. Então quando digo que o Oráculo de Delfos tem um sentido simbólico na Jornada do Herói quero dizer justamente que ele tem um caráter digamos "positivo" e um caráter "negativo" também. O caráter positivo é própria ideia de que haja um centro para onde as pessoas recorrem quando a vida delas perde o sentido. A idéia da existência desse centro é importante. Acreditar que haja um centro que pode nos indicar os caminhos a seguir, as decisões a tomar é importante.

Oráculo de Delfos,
pegadinha existencial...
Agora lembra o que eu disse sobre a questão da autonomia? Pois é. Aí é que está o outro lado do símbolo do Oráculo de Delfos. Todos os heróis gregos que foram ao Oráculo de Delfos tiveram um fim trágico ou uma batalha mortal onde perderam - ou tiveram de abrir mão - de partes importantes do que acreditavam que era "a sua vida". Heróis trágicos são em geral os que foram a Delfos buscar orientação. Por que isso? Porque quando projetamos nossas escolhas, nossa responsabilidade e nosso mérito em outro centro que não nós mesmos - no caso indo buscar respostas para a minha vida num lugar exterior a mim mesmo, Delfos - perdemos contato com o que há de mais íntimo em nós e abrimos mão do que caracteriza o herói, o mérito pela responsabilidade sobre os próprios atos. Aquela questão que falamos antes.

Mas por que as pessoas iam a Delfos fazer perguntas?

Herói questionando à sacerdotisa
(Pítia), no Oráculo de Delfos
RK: Essa é a melhor pergunta! Existem duas respostas para ela: a mitológica e a social. A social é a que nos interessa aqui, mas eu vou contar um pedaço do mito também, claro. A social é que heróis e pessoas comuns, reis e cidadãos iam ao Oráculo porque os pais dos pais de seus pais iam. Era uma tradição. Já perguntei à minha mãe porque ela acorda e liga a televisão e, depois de um tempo conversando, vi que a minha avó fazia isso. Veja, não estou julgando, até porque não me cabe. Estou apenas observando um padrão de comportamento de pessoas queridas e próximas a mim para depois perceber se eu faço o mesmo e aí sim julgar, para mim, se eu, Renato, quero seguir esse padrão ou não. O julgamento é sempre interno e referente à minha vida, nunca à alheia. Depois de perceber esse padrão interno, familiar, eu comecei a ver menos televisão, a definir melhor o que eu queria ver e o que eu não queria e não mais a deixar ela ligada direto. Hoje em dia eu nem vejo mais televisão, mas isso foi um processo lento de escolha autônoma pela internet como meio principal. Funciona para mim.

Gaia, Deusa Terra
Mas você me perguntou do mito sobre o Oráculo de Delfos. Ele responde também porque as pessoas iam tantas vezes a ele para "dar sentido à narrativa de suas vidas", que é um dos temas principais - se não for o tema principal da Jornada do Herói. Vou contar o mito sumariamente: Toda a terra, para os gregos, era o corpo de uma divindade feminina deitada. Os gregos, como se sabe, possuíam verdadeiro fascínio pela simetria e pelas formas, principalmente pela ideia de centro. Pois bem, qual o centro de um corpo? O umbigo, certo? Ele fica bem no meio. O Oráculo da cidade de Delfos, segundo os gregos, havia sido construído sobre uma pedra chamada "Ônfalos" ("umbigo", em português). Eles realmente acreditavam que o templo do Oráculo havia sido construído no centro do mundo, em cima do umbigo da Gaia! Além disso há outras histórias sobre o simbolismo do Oráculo. O deus responsável pelo Oráculo era Apolo que havia assassinado ali, em Delfos, a serpente Píton, repetindo o padrão que seu pai Zeus havia iniciado ao eliminar o dragão-serpente Tífon, respectivamente neto e filho de Gaia. Conto esses e outros mitos com mais detalhes e trabalho sobre eles durante a Jornada do Herói e agora terei ainda mais possibilidades de trabalhá-los no curso de mitologia on-line que estou abrindo por requisição dos meus ex-alunos da Jornada, que ficam fascinados com o universo mítico.

Então o Oráculo de Delfos, hoje em dia seria o quê exatamente?

Deus-Mercado
RK: Isso depende de você. Pode ser o "Todo-Poderoso Deus-Mercado" que vai decidir qual a faculdade é mais rentável para você agora, que vai acordar um dia eufórico, no outro depressivo, que vai julgar, condenar e absolver nações inteiras segundo as regras que mudam ao bel prazer dele. Pode ser esse tipo de tirano louco ensandecido que vai te socializar a ser agressivo, pró-ativo, combativo, hipercompetitivo, empreendedor, inquieto, eternamente carente, inseguro e por aí vai. Você fez uma cara engraçada quando eu disse "carente", é claro que é carente! Quem mais seria capaz de consumir desenfreadamente senão um ser humano radicalmente carente? É preciso que hajam carências intermináveis a suprir as necessidades de venda de um "Todo-Poderoso Deus Mercado" insaciável. Bem esse pode ser um Oráculo. Você pode tirar as suas respostas daí. Muita gente tem feito. E você vê o mundo no qual estamos vivendo...

Outro Oráculo possível hoje em dia é a "Toda Poderosa grande Mídia" que vai dizer que você tem que ficar em casa, ligar a tevê e não se socializar com outras pessoas, porque o mundo está muito perigoso, porque a "sensação de insegurança" e o "clima de violência" ou a "onda de medo" estão muito fortes e é melhor ficar em casa e - porque não? - ver mais um programinha de 10 minutos amassado entre 20 minutos de comerciais. Você também pode tirar as suas respostas daí.

Ao longo do treinamento da Jornada do Herói nós falaremos de outros oráculos, mas no geral acho que dá para perceber o quão trágico é seguir por eles. O quão problemático pode ser projetar tua autonomia e buscar orientação nesses lugares. Minha aposta pessoal e minha aposta como treinador é que o crivo interno, ser o eixo de sua própria vida, é mais interessante.

Pelo que entendi então a Jornada do Herói é um treinamento para desenvolver a autonomia e o mérito. Mas como isso é feito?

RK: O treinamento é dividido em quatro partes: Paidea, Katábasis, Anagnosis, Apoteosis. Essas partes são termos da jornada do herói mítico grego clássico e significam: Aprendizado ou preparação, mergulho nas trevas, autoconhecimento e encontro com os deuses.

Seguir o líder ou ser o SEU PRÓPRIO líder?
Na Paidéa temos o momento da "grande dúvida". É desconcertante para muitos heróis, no início. Na Katábasis temos o mergulho nas trevas, enfrentar os limites, crenças e valores que não são propriamente nossos, para retirar deles o que nos seja útil e descartar (matar e eliminar o grande dragão) tudo o que não concordamos ou que não nos traga nada de bom ou que nos limite a pensar de novas formas, a inovar. Na Anagnosis começaremos a usar a energia psíquica presente nos arquétipos (deuses gregos) conscientemente para criar novos projetos para a nossa vida, nossos negócios, nossa existência, e na apoteosis iremos além, nos preparando para levar esses projetos, negócios, enfim essa vida nova para o mundo "lá fora", porque o treinamento da Jornada é um laboratório. A vida real, o desafio real, se processa "lá fora", no cotidiano que devemos preencher de significado e vida!

Até agora estivemos conversando só sobre a Paidea, sobre o que acontece no início da Jornada, que é justamente essa parte do treinamento em que começamos a duvidar do que vem "de fora", duvidar que vivamos no "melhor dos mundos possíveis" e que todas as idéias já foram pensadas, todas as melhores alternativas já foram tentadas e que não há nada mais útil e funcional do que nos resignarmos com as respostas que vêm "de fora", do Mercado, da Mídia, da Moda, etc. Só acreditando que outras realidades são possíveis, outro sistema de valores, outros comportamentos, outras individualidades são possíveis é que poderemos realmente inovar e instaurar algo de significativo e novo no mundo. Steve Jobs, se não acreditasse em tecnologia portátil com baterias de longa duração não teria criado o império da Apple, Jung se não acreditasse que os mitos eram mais que historinhas de povos primitivos e que significavam padrões de comportamento típicos do ser humano - seja ele japonês, norte-americano, brasileiro ou nigeriano - não teria desenvolvido a genial psicologia analítica, Einstein se não tivesse duvidado da noção de espaço e de tempo newtonianos que era a única aceita em seu tempo, não teria desenvolvido a teoria da relatividade, Mahatma Gandhi não teria libertado a Índia do império britânico se não duvidasse de que aquilo era inevitável e não teria feito da forma que fez, sem dar um tiro, se não acreditasse que isso era plenamente possível. Essa é a primeira parte da Jornada do Herói, duvidar para acreditar.

(...)
_______
Fim da primeira parte da entrevista, a seguir: Katábasis, o caminho do herói e as noções de compromisso e desafio.

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Entre a Jornada e a Arte, conexões e concepções

O blog Areté e Timé - palavras que querem dizer "Superioridade" e "Honra", respectivamente - é um único blog destinado a unir dois treinamentos do Instituto ATENA: "A Jornada do Herói"® e "A Arte da Guerra Oriental"®, assim como o blog Liderança e Estratégia foi criado para unir os treinamentos "Liderança Corporativa e PNL"® e "Estratégia em Ação"®. Mas o que efetivamente une esses dois treinamentos?

A Jornada
A Jornada do Herói, sobre a qual já foram publicados, aqui, mais de vinte textos, é um treinamento de caráter pessoal, destinado a alinhar metas (em qualquer âmbito do herói-cliente) aos seus valores através de ferramentas criadas e patenteadas num processo que usou a transdisciplinaridade para unir mitologia grega, programação neurolingüística, psicologia analítica, antropologia, neurociência cognitiva e storytelling coach. É um treinamento único, criado através de uma integração íntima que só foi possível graças a anos de estudos e pesquisas. Mas e a "Arte da Guerra Oriental"®?

A Arte
O treinamento "A Arte da Guerra Oriental"® é um treinamento avançado em metas e resolução de conflitos que abrange a cultura política, a economia, o modo de pensar, as religiões e filosofias e as relações internacionais das três maiores culturas do oriente contemporâneo: Índia, China e Japão. Digo "avançado" porque "A Arte da Guerra Oriental"® é um treinamento que exige mais do Artista-cliente e do treinador, é um treinamento longo, com quatro meses de duração, o único treinamento de "formação" do Instituto ATENA. Para ilustrar onde, como e quando os dois treinamentos se interceptam e se completam, vou fazer algo que meus Heróis da Jornada adoram: explicar um conceito e contar uma história.

O Conceito
Yin e Yang, mais do que "passivo" e "ativo" são também conceitos de movimentos. Quando nosso coração se desinfla, levando sangue, nutrientes e oxigênio para nossas células, no momento da diástole, ou quando ele se infla, tragando o sangue que precisa ser limpo e realocado, na sístole, ele está, respectivamente, em movimentos centrífugas e centrípetas, em busca do yang - do ativo - ou do yin - do passivo, e é só assim que a vida é possível. O mesmo se opera na vida psíquica do indivíduo. Precisamos de momentos de extroversão e introversão, dos nossos silêncios tanto quanto das nossas conversas, de excluir tudo o que não nos pertence tanto quanto de incluir o novo. A energia psíquica se manifesta entre esses dois opostos e é a partir daí que a vida pulsa.

A História
Um dos períodos mais importantes da história da China, foi o período dos "Dez Grandes", um período entre o aparecimento da espécie humana nas planícies chinesas e um grande dilúvio. O primeiro desses grandes imperadores foi Fu Hsi e o segundo Shen Nung.

Fu Hsi e Shen Nung
Fu Hsi foi, consta a lenda, o criador (ou descobridor) dos trigramas que formam o I-Ching. Ele criou apenas os oito trigramas e não 64 hexagramas que compõem o "Livro das Mutações", mas deu início a todas as concepções que embasaram um dos oráculos mais antigos do mundo. A seu modo, estabeleceu uma nova concepção do mundo e uma nova forma de se relacionar com ele, ou seja, fincou sua marca e, a partir da sua existência, haveria uma nova forma de vivenciar aquele universo, de ler o território da realidade. Foi - na concepção da neurolingüística - um criador de mapas, na concepção da mitologia local e da história do seu país, um imperador e um Herói.

Shen Nung inventou o arado e instituiu os mercados, dando início tanto à produção quanto à troca de mercadorias no território chinês.

O Imperador Amarelo
Após esses dois imperadores seguiu-se o império de Yen-ti que foi destronado por seu irmão, Huang Ti, o famoso "Imperador Amarelo". Esse magnífico e mítico imperador teve nada menos do que vinte e cinco filhos, dos quais não menos do que doze famílias feudais do período Chou se proclamaram descendentes! Huang Ti inventou o uso do fogo, queimou as florestas das montanhas, limpou as matas, incendiou os pântanos e expulsou os animais selvagens. Então os homens puderam criar o gado. Sob seu império foram subjugados os bárbaros das quatro fronteiras, alguns dos quais, conta o mito, tinham furos no peito, braços longos e olhos afundados. Ele consultou seus sábios sobre o Terraço Brilhante (Céu, astrologia) e ordenou que se fizessem tubos musicais e uma estrutura com dez sinos "para harmonizar os cinco sons".

Compreender a importância do Imperador Amarelo, para a China, é compreender a mentalidade yang chinesa e suas ramificações na compreensão e uso prático do poder. Mais adiante, em outro artigo, falaremos da mentalidade Yin, por hora, ficamos com uma passagem prática e densa dadimensão do pensamento Yang do Grande Livro do Imperador Amarelo:

"Dominando o vasto mundo, tenho apenas um propósito em vista, ou seja, manter controle absoluto e cumprir com as obrigações de Estado. Objetos estrangeiros e caros não me interessam. [...] Não tenho necessidade dos manufaturados de vosso país [...] Cabe a vós, ó Rei, respeitar minhas opiniões e manifestar ainda maior devoção e lealdade no futuro, para que, através da perpétua submissão ao nosso trono, possais assegurar paz e tranquilidade a vosso país daqui por diante. [...] Nosso Império Celestial possui todas as coisas em prolífica abundância e não carece de nenhum produto dentro de suas fronteiras. Não havia, portanto, nenhuma necessidade de importar manufaturas bárbaras de fora, em troca de nossos produtos. [...] Não esqueço a distância solitária de vossa ilha, separada do mundo por extensões imensas de mar; tampouco esqueço vossa escusável ignorância sobre os costumes de nosso Império Celestial."

A lógica da mentalidade chinesa, para quem sabe perceber os movimentos internos e externos contemporâneos tanto da sua economia como política, mentalidade e religião. Essa lógica, junto com as lógicas indiana e japonesa são modeladas e trabalhadas no treinamento "A Arte da Guerra Oriental"® para criar o melhor curso de formação de Artistas da Guerra, de artistas do conflito, o espaço onde se produzem as melhores condições possíveis para o florescer completo do artista da guerra. E o que é o Artista da Guerra?


“Um artista da guerra, nada mais é do que um artista do conflito. Aquele que manipula o conflito retirando dele soluções, idéias criativas, saídas inesperadas, úteis e principalmente, tendo conseguido seu objetivo inicial, que está sempre para além do conflito.”Renato Kress

Texto: Renato Kress
Criador dos Treinamentos "A Jornada do Herói"® e "A Arte da Guerra Oriental"®

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Os Sonhos na Jornada do Herói

Sempre me perguntam qual a importância das duas páginas, ao final da apostila da Jornada do Herói, chamadas "Pequeno caderno de sonhos, imagens, reflexões e temas recorrentes durante a Jornada". Esse 'caderno' de duas páginas para as jornadas efetuadas em finais de semana e de doze páginas para as jornadas efetuadas em dois meses, é separado em duas colunas, respectivamente 'registros verbais' e 'imagens'. Fica logo depois do fim da apostila de aula, separando as "quebras de estado" e a "bibliografia" da apostila de aula.

Qual seria a importância de anotar e verificar os sonhos, imagens e reflexões que possamos vir a ter ou desenvolver ao longo das nossas Jornadas?
O treinamento da Jornada do Herói é baseado na transdisciplinaridade entre vários ramos do saber, entre eles, a psicologia analítica - criada pelo psicólogo suíço Carl Gustav Jung - e, para ele, o sonho era "um teatro em que o próprio sonhador é cena, autor, produtor, ator, público e crítico" (Símbolos de Transformação, p.5) O sonho é o maior panorama possível sobre a nossa vida inconsciente.

Hypnos
Na Grécia Antiga o sonho era personificado na divindade Hipnos (também conhecido como 'Oneiros'), uma divindade alada que pousava sob a cabeceira da cama dos seres humanos e contava, por imagens, sobre a vida dos deuses e a relação dessa vida divina com a vida do sonhador. Segundo Corintha Maciel "Podemos considerá-lo um amigo que nos visita todas as noites e nos informa como estamos nos conduzindo em nossa vida, ou, ainda, como um repórter que nos trás notícias de nosso lado oculto."


O Sonho na Jornada do Herói
Ao longo da Jornada trabalhamos com símbolos e processos que ampliam nossa percepção acerca do que está se operando no nosso inconsciente. Seja entrando em contato com aspectos que renegamos para ressignificá-los, seja observando padrões que estavam até então imersos no "ponto cego" de nossas vidas cotidianas, seja mesmo através de sonhos e imagens que nos venham ao longo das dinâmicas e dos dias da Jornada.

O sonho é estudado aqui como veículo e criador de símbolos. Manifesta a natureza complexa, representativa, emotiva, vetorial do símbolo, assim como as dificuldades de uma interpretação. O sonho traz e cria os símbolos, que são as letras com as quais nosso inconsciente escreve as mensagens que nos importa saber sobre o mais íntimo de nossa existência.

"...símbolo da aventura individual, tão profundamente alojado na intimidade da consciência que se subtrai a seu próprio criador, o sonho nos aparece como a expressão mais secreta e mais impudica de nós mesmos. Ao menos duas horas por noite vivemos nesse mundo onírico dos símbolos. Que fonte de conhecimentos sobre nós próprios e sobre a humanidade, se pudéssemos sempre recordá-los e interpretá-los." - Frédéric Gaussen

Sonhos e seus estudiosos
Seguem algumas interpretações do que seja o fenômeno dos sonhos, sob a ótica de diferentes autores.

Para Sigmund Freud "o sonho é a expressão, ou a realização, de um desejo reprimido"

Para Carl Gustav Jung "o sonho é a auto-representação, espontânea e simbólica, da situação atual do inconsciente"

Para J.Sutter "o sonho é um fenômeno psicológico que se produz durante o sono, constituído por uma série de imagens cujo desenrolamento representa um drama mais ou menos concatenado"

Para Henry Amiel "o sonho é o domingo do pensamento"

Para Roland Cahen "...o sonho exprime as aspirações profundas do indivíduo e, portanto, será para nós uma fonte infinitamente preciosa de informações de toda ordem"

O que podemos retirar dessas definições é que o sonho independe da vontade e responsabilidade do sonhador. Sua dramaturgia noturna é espontânea e incontrolada. Nele, a consciência das realidades se oblitera, o sentimento de identidade se aliena e se dissolve.

Panorama da História do Sonho pelo mundo
O Egito Antigo atribuía aos sonhos um valor sobretudo premonitório: 'O deus (Amon-Rá) criou os sonhos para indicar o caminho aos homens, quando esses não podem ver o futuro'. Sacerdotes interpretavam nos templos os símbolos dos sonhos, segundo chaves interpretativas transmitidas pelos deuses. A oniromancia, ou a adivinhação por meio dos sonhos, era praticada em todos os lugares.

Para os negritos das ilhas de Andaman (Andamã), os sonhos são produzidos pela alma, que é considerada como a parte maléfica do ser. Sai pelo nariz e realiza ora do corpo as proezas de que o homem toma consciência em sonho.

Para todos os índios da América do Norte, o sonho é o signo final e definitivo da experiência. Segundo o mitólogo romeno Mircea Eliade "Os sonhos estão na origem das liturgias, estabelecem a escolha dos sacerdotes e conferem a qualidade de xamã, é deles que provêm a ciência médica, o nome que se dará às crianças e os tabus, eles ordenam as guerras, as caçadas, as condenações à morte e a ajuda a ser ministrada; só eles compreendem a obscuridade escatológica. Enfim o sonho confirma a tradição: é o selo da legalidade e da autoridade.

Para os Bantos do Kasai (bacia do Congo), certos sonhos são produzidos pelas almas que se separam do corpo durante o sono e vão conversar com outras almas, vivas ou mortas. Esses sonhos têm caráter premonitório referente à pessoa ou então podem consistir em verdaeiras mensagens dos mortos aos vivos, que interessam a toda a comunidade.

A classificação dos sonhos
As pesquisas analíticas, etnológicas e parapsicológicas dividiram os sonhos noturnos em seis categorias:

1. O sonho profético ou didático: trata-se de um aviso, mais ou menos disfarçado sobre um acontecimento crítico, passado, presente ou futuro; sua origem é frequentemente atribuída a uma força celeste.

2. O sonho iniciatório do xamã ou do budista tibetano de Bardo-Todol: é um sonho carregado de eficácia mágica e destinado a introduzir o homem num outro mundo por meio de um conhecimento e de uma viagem imaginários. Nos dois casos pode vir a incorporar um primeiro estágio de negação da carne-matéria. Nos dois casos, tanto para o xamã quanto para o monge budista, isso pode ser uma fase para um renascimento do sujeito em novo plano da experiência humana.

3. O sonho telepático: que estabelece comunicação com o pensamento e os sentimentos de pessoas ou grupos distantes. Muitos desses sonhos foram descritos por escritores e pessoas comuns antes da primeira e segunda guerra mundiais, por exemplo.

4. O sonho visionário: que transporta ao que H. Corbin chama de 'o mundo das imagens', e que pressupõe, no ser humano, num certo nível de consciência, poderes que nosa civilização ocidental talvez tenha atrofiado ou paralisado, poderes sobre os quais se encontram testemunhos entre os místicos iranianos. Neste caso não se trata de presságios ou de viagens, mas de visão.

5. O sonho pressentimento: que pressente e privilegia uma possibilidade entre mil outras.

6. O sonho mitológico: que reproduz algum grande arquétipo e reflete uma angústia ou uma potencialidade fundamental e universal.

Todos esses tipos de sonhos são passíveis ao longo da Jornada do Herói. Pois o material que trabalhamos são símbolos, e as "escavações internas" que operamos ao longo da Jornada, principalmente ao longo da Katábasis, rearranjam os mosaicos internos de nossa psique possibilitando que novas percepções venham à tona, percepções que nosso inconsciente nos comunicará pela sua linguagem natural, a linguagem dos símbolos.

Exemplos de sonhos de Heróis durante a Jornada
Tomei a liberdade de trocar os nomes dos sonhadores para resguardar suas intimidades.

- Estava numa festa com muitos conhecidos, um amigo de infância - que eu não via a mais de vinte anos - me chamou para dançar. No meio da dança começamos a beber e ele me contou que eu precisava girar menos, porque daquele modo iria cair mais cedo ou mais tarde. Quando acordei estava zonza, completamente desbaratada. Levantei e senti que eu precisava arrumar minha mesa de trabalho e por algum motivo não parei até encher dois grandes sacos de lixo com papéis velhos que eu guardava não sei porquê. minha mente clareou depois daquilo. - Márcia

- Sonhei que estava numa biblioteca subterrânea que subia para um morro, numa colina. Nessa colina vi um ser muito magro fazendo piruetas e acrobacias na beira de um abismo. Não consegui me aproximar dele, mas conversamos. Ele estava confiante e sorrindo e acabou pulando no abismo e eu tenho certeza de que ele não morreu. (Eu escrevi um conto sobre esse sonho de uma heroína aqui) - Lígia

Os sonhos e a Jornada
Usamos as imagens simbólicas que aparecem nos sonhos de nossos heróis como formas de pesquisa das informações que nosso incosciente julgue que sejam tão importantes a ponto de ele querer que nós nos dediquemos a conhecê-los melhor. Orientamos, na Jornada do Herói, sobre as formas como nossos Heróis e heroínas possam e devam anotar e pesquisar sobre seus sonhos, para que os avisos sejam percebidos, que as interpretações sejam possíveis e que os pedidos de nosso mundo interior não sejam negligenciados por nosso dia a dia celerado, nesse tempo que consome todos nós.

Renato Kress
Diretor do Instituto ATENA
Criador do treinamento A Jornada do Herói
Antropólogo e Cientista Político pela PUC-Rio, Trainer em Programação Neurolingüística pelo Deutsch Verband für Neurolingüistisches Programmieren e pelo International Association of NLP Institutes, pós-graduando em Psicologia Analítica pelo IBMR.

sexta-feira, 7 de outubro de 2011

O poder da narrativa: Medo midiático e a Jornada do Herói

"Qualquer um pode fazer história, só um grande homem pode escrevê-la." - Oscar Wilde, Aforismos

Quem observa os observadores?
A vida cotidiana é vivida numa sucessão interminável de fatos, dados, datas e acontecimentos. Vivemos sobrecarregados, atordoados e minimizados por televisão, computador, facebook, twitter, jornais, revistas, imagens e representações de uma realidade que já quase não vivemos senão por projeções. Projetamos nosso presente e deixamos que ele se alastre por diversos instantes que cronologicamente pertencem ao passado e a uma expectativa de futuro, de forma que viver efetivamente o presente é quase impossível hoje em dia.

Fuga do agora, vida em projeção
Não espanta que o budismo seja uma das filosofias religiosas que mais crescem hoje em dia, justamente porque prega a vida presente, o momento presente o aqui e agora que somos educados pela mídia a negligenciar constantemente. É impossível agir no passado ou no futuro, eu não posso, agora, ir dormir mais cedo ontem ou  resolver um problema semana que vem. Não é metafísica, é a constatação mais prática e óbvia possível! Só parece metafísica porque estamos submersos numa cultura de projeção, anestesiados, sem contato com o presente, incapacitados de fazermos nossa própria história. Há um jogo perverso de poder aí e é dele que trataremos nesse artigo.


Um mundo de coadjuvantes
Exercita-se, diariamente, a idéia de que devemos nos informar sobre o que ocorre ao nosso redor e, na nossa cultura, a forma mais corriqueira de informar-se é ler um jornal, revista ou ver o noticiário na TV. É apenas uma idéia cultural, não é uma realidade nua e crua. Se realmente nos atermos aos interesses em jogo nesses veículos de comunicação, perceberemos outras lógicas operando no que chamamos de "jornais", lógicas que cabe sempre a cada um, individualmente, estar a par para poder conscientemente concordar ou discordar, aceitar ler ou ignorar, manter sua assinatura vitalícia do jornal ou buscar fontes alternativas cujos valores sejam mais coerentes com os teus valores enquanto indivíduo.

A memória pessoal e a memória sobressalente
Mas antes de tudo é preciso conhecer os interesses que movem esses meios de comunicação e, para isso, podemos fazer da mesma maneira como fazemos com as pessoas ao nosso redor, observar suas ações ao longo do tempo para determinar a trajetória do caráter delas. Usar a nossa memória para analisar os veículos que se propõem a ser uma "memória sobressalente" sobre a nossa sociedade e cultura. Não é um exercício fácil, mas como tudo o que diz respeito à Jornada do Herói, o fácil não tem mérito, não tem esforço, não imprime uma marca densa na memória, que é o que queremos.

Mudança, direção e sentido
"A história humana é o resultado do conflito dos nossos ideais com as nossas realidades, e a acomodação entre ideais e realidades determina a evolução peculiar de cada nação." - Lyn Yutang, Com Amor e Ironia

 A vida é um processo de contínua mudança. Nascemos, crescemos, envelhecemos e morremos. O processo pode ser lento o suficiente para que tenhamos a impressão de uma consciência mais ou menos rígida de quem somos e do que somos, mas em efeito essa consciência muda com o tempo e o espaço.

Representamos o que na sociologia se convencionou chamar de "papéis sociais" distintos ao longo da vida e em diferentes meios, mas o "papel social", o que Jung denomina como "persona", faz parte e é também uma representação coordenada, socializada, do self, de nosso eu mais íntimo. Então se a persona muda essa mudança reflete também o grau de espectro aceitável dentro das manifestações possíveis do self. Ou seja: eu me adapto à sociedade e essa adaptação mostra também um pouco das minha escolhas, da minha autonomia e natureza íntimas. Minha "persona" é parte do meu "self", a escolha que efetuo sobre a parte minha que irá se aventurar e se expor ao mundo fala também de mim, do meu eu que escolhe e do meu eu que se esconde.

Quem é o narrador? Quem dá o sentido?
O que importa para compreendermos como a Jornada do Herói se implica no momento histórico que vivemos, com a disseminação do medo coletivo e difuso televisionado diariamente, é compreender como a autonomia do indivíduo é roubada, como o seu caráter libertário, sua liberdade, é cerceada pelos mecanismos que buscam deter o poder da narrativa, o poder de doar o sentido ao mundo.

"A história é o pesadelo do qual estamos tentando acordar." - James Joyce
Existe uma citação que diz que "A história é contada pelos vencedores" e também é uma questão prática, nada filosófica ou metafísica: quem permanece vivo vai lá e escreve, quem permanece no poder tem condições de se fazer ouvir mais e melhor. O que me leva a pensar, e se invertêssemos essa dinâmica? "Quem se faz ouvir mais e melhor permanece no poder", será que isso é verdade?

Quem conta a história dá o seu enfoque, dá a sua versão, enfatiza o que interessa e o que percebe. Aquilo que mais me atinge num determinado acontecimento vai ser aquilo de que mais me lembrarei quando relatar o acontecimento a alguém, sempre! O enfoque depende das minhas sensibilidades e interesses. Por isso sempre convido meus alunos a compreender os interesses dos que contam as histórias, principalmente quando eles vendem a ideia de que estão contando histórias "reais" ou por um prisma "imparcial".

Boicotes e ênfases, jogos de poder orquestrados
Penso sobre os institutos de pesquisa científica do Rio de Janeiro, as universidades, as ongs, oscips que realmente trabalham sério, diariamente, para construir um mundo mais digno e que só saem na televisão quando são alvos da "violência", do "pânico generalizado", do "terror" e outras das palavrinhas chaves que podemos contar aos milhares nos diários informativos impressos ou televisionados. Há um recorte aí. Há um silêncio programado sobre o que temos de bom, uma ênfase perversa em construir um discurso do mal crescente. Essa ênfase custa dinheiro e todo dinheiro é gasto com uma meta. A tinta do jornal, o combustível dos caminhões que levam eles a todos os bairros pela manhã, o salário dos jornalistas, o aluguel dos prédios de redação, o horário na TV, os ternos impecáveis dos apresentadores não são de graça. São caros e ninguém gasta dinheiro a troco de nada. Há um interesse aí e esse interesse recorta preferencialmente o medo.

Medo, manipulação e poder
"Um dos efeitos do medo é perturbar os sentidos e fazer com que as coisas não pareçam o que são." - Miguel de Cervantes, Dom Quixote


Manter uma população com medo é manter uma população com o que em psicologia se chama de "rebaixamento do nível mental". A capacidade cognitiva do sujeito sob o domínio do medo se reduz às possibilidades ditadas pelo cérebro chamado "reptiliano": ficamos sujeitos a pensamentos simples e rasteiros , prisioneiros da ideia principal do cérebro reptiliano ("fugir ou atacar") ficamos submersos em uma lógica dual como maniqueísmos e bipolaridades de todo o tipo como "bom-mau", "bem-mal", "herói-vilão", "nós-eles", "certo-errado" e nossa capacidade de organização e discernimento é rebaixada a quase zero. O mundo é mais complexo que os binômios "favela-asfalto", "dentro-fora", "hétero-homo" ou "homem-mulher", mas numa atmosfera permeada pelo medo é quase impossível perceber isso.

"O medo é um dos soberanos da humanidade. É o que possui o maior dominio de todos. Ele faz-nos embranquecer como velas. (...) Tem se criado mais medo do que qualquer outra coisa. Como força modeladora, não perde para a própria natureza." - Saul Bellow, Henderson, o Rei da Chuva.

Diante desse quadro nos é vendida (mesmo! eles cobram por isso!) a compreensão de que há um "quarto poder" em ação, a grande imprensa. Responsável, entre outros, por contar a história, por dar um sentido uma ênfase e um enfoque a essa história, por apontar "heróis" e "vilões", "culpados" e "inocentes", por colocar-se no papel da vítima indefesa que, através da própria vitimização, justifica um determinado posicionamento político cada vez mais agressivo, excludente e violento.

Quem tem medo de quê?
"O medo é o pior dos conselheiros" - Alexandre Herculano, Apontamentos para a história dos bens da Coroa e dos forais.

Creio, e talvez seja uma jogada um tanto quanto esperançosa, que o maior medo que pode haver é o medo do potencial criativo do ser humano. Todo o mundo que aí está, tudo o que hoje obedecemos e temos como verdade absoluta foi criado por homens. É o que o sociólogo Émile Durkheim chamava do "poder dos mortos sobre os vivos", o poder dos que primeiro criaram as regras e fizeram elas valer, da forma que for.

Quem narra, quem é narrado, quem dá o sentido?
O maior de todos os medos, a meu ver, é o medo que todos os sistemas que detêm algum poder têm de que esse potencial criativo do ser humano - a capacidade de ser o narrador da sua própria história - seja descoberto e ampliado. E se amanhã a "sensação de insegurança" veiculada pela mídia acordasse com uma certa "sensação de insegurança"? Se ela não fosse mais tão "óbvia". Se ao invés de ouvirmos à televisão desligássemos e ouvíssemos o som das ruas, se conversássemos com nosso vizinho ao invés de olharmos ele como "o outro", "o desconhecido", como uma ameaça em potencial? E se abandonássemos o papel de espectador e assumíssemos uma postura de protagonistas das nossas histórias? E se criássemos nossos próprios sentidos, e se fôssemos nossos próprios heróis?

"A única coisa de que devemos ter medo é o próprio medo." - Franklin Delano Roosevelt, Discurso de posse.

Texto: Renato Kress
Diretor do Instituto ATENA e
Criador do treinamento "A Jornada do Herói®"
Conheça mais do treinamento A Jornada do Herói®

terça-feira, 4 de outubro de 2011

Heroínas: Desafios e integração na Jornada

Ártemis
A Jornada e a Mulher

Quando penso nas várias edições da Jornada do Herói, desde os tempos de 2005, quando a primeira delas foi efetuada no Flamengo, no Rio de Janeiro, em parceria com o INAp, observo uma singularidade interessante: a maior parte dos grupos é composta por Heroínas, mulheres sábias, corajosas, verdadeiras guerreiras, em busca do maior desafio: vencerem-se a si mesmas, descobrirem e manterem suas identidades de mulheres, mães, amantes, filhas, profissionais, esposas e amigas numa sociedade em que a feminilidade só é exaltada quando vinculada ao consumo.

As experiências femininas na Jornada sempre são impressionantemente enriquecedoras para o homem que souber observar, aprender e respeitar essa dinâmica complementar, essa vivência integradora. O olhar atento e a atitude de aprendiz leva sempre ao melhor aproveitamento, em ambos os sexos.

Afrodite
Animus, o caminho da integração feminina
A psique humana opera por pares complementares, opostos que funcionam como balizas para o fluxo da energia psíquica, que é o que mantém nossas mentes em funcionamento, nossas idéias chegando e indo embora, nossos sonhos à noite. O homem naturalmente tende a ter uma compreensão mais masculina da realidade e o inconsciente (numa situação normal) tende a criar um pólo oposto, compensador e integrador dessa visão unilateral da realidade, a Anima. O mesmo ocorre com a mente feminina. Jung chamou às manifestações de complementariedade masculina e feminina do inconsciente respectivamente de Animus e Anima.

Na famosa obra "O Homem e Seus Símbolos", Marie Louise Von Franz define magistralmente os conceitos de Anima e de Animus. Por hora nos concentraremos no Animus, a contraparte masculina de uma psique feminina, ou, segundo Von Franz, "a personificação masculina do inconsciente da mulher". Como todas as manifestações do inconsciente, o Animus é simbólico, ou seja, dual, dialógico, possui uma dimensão positiva e uma dimensão negativa.
Atena

Enfrentando o Dragão
O Animus pode se manifestar como uma idealização das características paternas da mulher, o que geraria um afastamento de qualquer relacionamento humano. É aquela velha fórmula do "nenhum homem é bom o suficiente para a minha filha" (na mente do pai) transubstanciada para "nenhum homem é bom o suficiente" (na mente da filha). Nessa fase pensamentos oníricos, desejos e julgamentos definem "como uma relação deveria ser" e afastam a mulher da realidade da vida, que não se adequa a padrões pré-estabelecidos, mas é plástica, mutável. Resta, na Jornada do Herói, o reconhecer e o enfrentar essa imagem, retirando dela o potencial para uma vida psíquica saudável.

O Barba Azul
"O homem talvez seja apenas o monstro da mulher e a mulher o monstro do homem" - Diderot, O Sonho D´Alembert

Hera
Dentro desse aspecto do Animus temos, por exemplo, a figura do Barba Azul - que assassinava em segredo todas as suas esposas e guardava seus cadáveres num armário (ou num quarto) que nunca deveria ser aberto. Engraçado que a chave desse armário (ou quarto) era confiada à nova esposa, com a ordem expressa de que ela nunca abrisse a porta. Lembra a história da caixa que Zeus entrega a Pandora com a ordem de que nunca fosse aberta, junto com a chave, é claro! Esse tipo de personagem é característico de um Animus repleto de reflexões semiconscientes, frias e destruidoras. Um tipo de pensamento calculista, malicioso e afeito a intrigas.

Trabalhar o Animus, tarefa da Jornada
"Só querer se relacionar com aqueles que se aprovam em tudo é quimérico, e é o próprio fanatismo" - Alain, Considerações

No mais íntimo murmura o Animus não trabalhado: "Você não tem salvação. Para que lutar? Não vale a pena!". Essas manifestações retrógradas do Animus servem para sinalizar a necessidade de enfrentarmos de frente suas necessidades e demandas, caso contrário a mulher estará presa a sentimentos crescentes de passividade, paralisação dos sentimentos, profunda insegurança ou uma sensação de nulidade e vazio abismais. Um Animus não trabalhado, em geral, é um fator de alienação psíquica, que desvia a mulher do seu potencial criativo.

Selene
A Jornada do Herói é um processo que, para a mulher, descortina o que lhe é próprio e íntimo no caminho da busca e integração da intenção positiva do Animus. Redimensiona-se a influência psíquica do Animus para que o foco seja, então, suas intenções positivas e essas são trabalhadas na Jornada, rumo à integração na consciência. É onde o treinamento alinha metas (projetos para o futuro) e valores (alicerces morais e históricos da biografia única das nossas heroínas).

Aspectos positivos do Animus
"Há tanta diferença entre nós e nós mesmos quanto entre nós e o outro." - Montaigne, Ensaios.

Trabalhando com o Animus, lidando com suas limitações e desenvolvendo suas grandes potencialidades, as heroínas da Jornada desenvolvem uma atividade criadora e rica de sentido. Começam a doar sentido para o universo ao seu redor e a emanar significado, transformando a vida num processo psiquicamente sustentável, desafiador e criativo.

Gaia
Um grande número de mitos e contos de fadas conta a história de um príncipe transformado por uma feiticeira em animal ou monstro, que é redimido pelo amor de uma jovem, processo que simboliza a integração do Animus na consciência.

Heroínas: mulher e plenitude
"Deus só criou as mulheres para domar os homens." - Voltaire, O Ingênuo.

A atenção consciente que uma mulher tem de dar aos problemas de seu ânimus toma muito tempo e envolve uma quantidade considerável de energia e sofrimento. É justamente no tempo e no sofrimento, como na escolha em trilhar o caminho de maior descoberta e aprendizado, que reside o mérito. É aí, então, que podemos chamá-las de "Heroínas", porque desenvolveram não só a Areté - a "superioridade" caracteristica de quem integrou partes conflitantes de sua psique, não eliminando os conflitos, mas elevando-os a um novo patamar - e a "Timé" - a "honra" característica de quem soube levar esse aprendizado para o dia-a-dia, para o convívio saudável e engrandecedor da sociedade e dos que as cercam.

Heroínas são essas mulheres incríveis que enfrentaram essa realidade em lugar de se deixar dominar por ela e tornaram o Animus um companheiro precioso que vai trazer como dote a esse "casamento sagrado interior" uma série de qualidades masculinas como a iniciativa, a coragem, a objetividade e a sabedoria espiritual que transcendem a dicotomia frígida da batalha dos sexos externa e da resistência à integração do Animus, interna.

Heroínas são aquelas que ouvem o chamado interno à aventura de si mesmas e respondem integrando, assimilando o que seu Animus tenha de positivo e utilizando essas capacidades como estados de recursos para os maiores desafios que surgirão, sempre, adiante.

Texto: Renato Kress
Imagens: Google Imagens, Deusas e manifestações do feminino