quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

A serpente e a semente

Estar Vivo

A única razão para viver é estar completamente vivo;
e você não pode estar completamente vivo se está esmagado por um medo secreto
e oprimido pela ameaça: Ganhe dinheiro, ou coma merda!
E forçado a fazer mil coisas sórdidas, piores do que sua natureza,
e forçado a se agarrar às suas posses na esperança de que elas o façam sentir-se seguro,
e forçado a observar cada pessoa que se aproxima com medo de que ela o derrube.

Sem um pouco de confiança uns nos outros, não conseguimos viver.
No fim, ficamos loucos.
É o castigo do medo e da mesquinhez, sermos piores do que nossa natureza.

Para estar vivo você deve sentir um fluxo generoso,
e sob um sistema competitivo isso é impossível, na verdade.
O mundo está aguardando novo e grande movimento de generosidade,
ou por uma grande onda de morte.
Precisamos mudar o sistema e fazer a vida livre para todos os homens,
ou veremos os homens morrerem, e então morrermos nós mesmos. - William Blake


Serpentes
Semana passada, lendo sobre Zeus para um trabalho do Instituto ATENA, depois de ler mais de dez capítulos do Gênesis, católico, me peguei pensando na imagem da serpente. Na Teogonia, poema épico do poeta grego Hesíodo, Zeus luta contra Tífon, um dragão (serpente alada) de cem cabeças que nasce de Gaia, deusa-terra. No Gênesis católico Yahvéh (o Deus hebraico) pune Adão e Eva por dar ouvidos à serpente e comer do fruto proibido. Então me dei conta de que em outra leitura, dos vedas, a divindade Indra (o "Zeus" dos hindus) elimina a "serpente cósmica" Vritra e que na Babilônia o deus Marduk elimina o dragão (mais uma serpente voadora) Tiamat, cada um deles dando origem a uma nova ordem do mundo.

Aspectos da nova ordem:
Politicamente essa nova ordem, com a instauração de uma nova divindade, poderia significar a chegada de levas populacionais num determinado espaço de terra, ou a emergência de uma nova camada da população que agora tomava a rédea daquela sociedade nas mãos. Psicologicamente esses reis ou deuses solares que vencem dragões representam o domínio da consciência sobre as forças das trevas, do inconsciente. Culturalmente poderia significar um movimento de saída de uma cultura de cunho matriarcal para uma cultura de cunho patriarcal, com as vantagens e desvantagens próprias das duas.

A serpente e o homem
O importante, aqui, é perceber que, no ocidente, é comum que a imagem da serpente, como a do dragão esteja associada à própria contrariedade do homem. Enquanto o homem está situado no final de um longo esforço genético, a serpente, essa criatura fria, sem patas e sem pêlos, está no início dele. Homem e serpente, em um certo sentido, são rivais ou, simbolicamente, complementares: Enquanto o homem representa a psique evoluída, superior, a serpente representa a psique inferior, obscura, rara e incompreensível, a parcela misteriosa de nossas mentes.

Serpente, alma, libido
A serpente, para alguns autores como André Viril, não passa de uma linha, mas uma linha viva. Uma abstração, mas uma abstração encarnada. A linha, se levarmos em consideração a matemática de Pascal, não tem início nem fim, e, quando se move, torna-se passível de todas as representações e metamorfoses. Dela, só enxergamos a parte exposta, manifesta e sabemos que ela continua.

Segundo Chevalier "A serpente visível é uma hierofania do sagrado natural, não espiritual, mas material.". Do seu comportamento podemos fazer observações sobre o tempo, que escorre como uma serpente, do espaço e das regras, de onde ela se refugia pelo "mundo de baixo", aquele buraco obscuro de onde ela surge e por onde ela se esvai, a fenda ou rachadura.

Essa serpente enigmática, secreta, age como nosso inconsciente. É impossível prever suas decisões, súbitas como seus ataques. Existe em várias culturas a imagem de um poço ou fosso recheado de serpentes, onde todas elas formariam, juntas, uma única multiplicidade primordial, uma coisa indivisível que não cessaria de enroscar-se e desenroscar-se, desaparecer e renascer. É uma das imagens mais conhecidas e autoexplicativas para a dinâmica do inconsciente.

Serpente-vida
Os Caldeus usavam a mesma palavra para vida e para serpente. Em árabe, a serpente é el-hayyah e a vida, el-hayat, sendo que um dos nomes de Deus é El-hay, ou aquele que traz a vida, o vivificante. Quando as religiões solares - entre elas o catolicismo - engendram um "Deus do Céu" que entra em combate com uma divindade da terra - a cobra, uma serpente, um dragão marinho como o Leviatã bíblico, etc - elas criam uma dissolução entre matéria e espírito que é danosa para ambos.

Na maior parte das mitologias, após a vitória sobre a serpente-dragão, a divindade do Céu consagra ou interioriza um aspecto da divindade da terra. Quando Zeus elimina Tífon ele ergue um templo em sua homenagem, gesto primordial imitado por Apolo - divindade de caráter solar que elimina Píton, serpente que nasce do corpo putrefato do dragão Tífon - que ergue o Oráculo de Delfos sobre o corpo da serpente mítica eliminada por suas flechas. Atená, após auxiliar o herói Perseu na vitória contra a górgona Medusa (sob cuja cabeça dançavam serpentes vivas no lugar de mechas de cabelo), coloca a cabeça dela sob sua égide, seu escudo, e, através dele, passa a paralisar de medo seus adversários.

Enantiodromia, Esquizofrenia e Saúde mental
A serpente, na sua característica de mudar de pele, é símbolo da vida que se renova enquanto passa e, também, da imortalidade. O ocidente começa a operar um corte com as tradições míticas quando elimina a serepente - o princípio da vida, princípio de mudança e imortalidade - sem se apropriar das características positivas do símbolo. Quando Yahveh simplesmente pune e descarta a serpente ele tira do homem (Adão) a sua imortalidade primordial tanto quanto o tantrismo redescobre a serpente, a Kundalini, enroscada na base da coluna vertebral, ele redescobre esse fluxo da vida.

A "perfeição" intolerante
Pode ser lindo, mas é só um pólo.
Todo absoluto é patológico.
O ideal de perfeição solar, imóvel, incorruptível, onisciente, onipresente e onipotente muitas vezes não dá lugar à naturalidade do perverso, do sujo, do morto, do erro. É um ideal totalitário que muitas vezes não enxerga ou até procura eliminar tudo o que seja diferença ou movimento, tudo o que seja natural da própria vida. Vivemos numa sociedade onde a assepsia domina e somos levados a acreditar que é um mundo saudável, onde separamos e analisamos e buscamos dominar o universo ao redor, afinal, crescemos ouvindo que a natureza da matéria é o pecado e a do espírito a evolução, enfim que "a matéria é ruim e o espírito é bom, belo e justo".

O psicólogo suíço Carl Gustav Jung, obcecado pelo estudo da dimensão inconsciente de nossas mentes, trouxe da alquimia medieval o termo "enantiodromia", que significa que  superabundância de uma força produz seu inverso. O excesso de limites de uma sociedade dará ensejo a uma nova geração libertária tanto quanto uma geração excessivamente liberal tenderá a gerar filhos reacionários e tradicionalistas. A enantiodromia - que pode ser compreendida historicamente por uma análise dialética de caráter hegeliano - é um processo de cristalização da psique que é danoso ao fluxo normal da energia psíquica, que é o que mantém a saúde mental. É preciso que a energia flua, que as idéias mudem, que os conceitos se transformem, que os pensamentos, como as serpentes, se livrem das cascas carcomidas pelo tempo, ainda que mantendo sua intenção positiva primordial, seu intento primário.

Quando cortamos a ligação entre as idéias (dimensão aérea) e a matéria (dimensão terrestre) não só damos vazão a condutas danosas para o nosso meio ambiente - qual o problema em devastar, aniquilar, extinguir espécies vegetais e animais se a matéria é eminentemente, ruim? - como também efetuamos um corte, uma esquizofrenia (em grego σχιζοφρενία; σχίζειν, "dividir"; e φρήν, "phren", "phrenés", no antigo grego, parte do corpo identificada por fazer a ligação entre o corpo e a alma) que nos leva a priorizar o espírito em detrimento da matéria, ou a crer que um seria essencialmente superior a outro. Esse corte, essa esquizofrenia, esse matar a serpente sem apropriar-se de suas qualidades positivas, é o germe de todo totalitarismo, de toda unilateralidade que procura justificar a morte da vida enquanto mudança perpétua e a torna berço de todas as intolerâncias, preconceitos e discriminações.

A Jornada, o mergulho, a serpente
Na segunda fase do treinamento A Jornada do Herói, no momento da Katábasis, do mergulho nas trevas, entramos em contato com a nossa "Hidra de Lerna" pessoal, com o dragão "Fafnir" que Siegfried (nosso ego heróico) elimina na floresta (representação do inconsciente, da dimensão misteriosa de nossa mente), mas, acima de tudo, aprendemos que Hércules, quando matou a Hidra, tornou-se um pouco a própria Hidra, quando molhou suas flechas no veneno mortal que escorria do pescoço dessa serpente do pântano de Lerna ou que Siegfried, ao matar Fafnir, bebeu do sangue que jorrava do pescoço do dragão-serpente e, desde então passou a ouvir o "chamado da natureza" e conhecer as línguas de todos os animais. Ignorar a dimensão ctônica (subterrânea) e telúrica (terrestre) é ignorar a própria vida em sua dimensão mutável e flexível, em sua dimensão adaptável. É abrir caminho para uma dimensão solar de isolamento, intolerância e rejeição do corpo e, por enantiodromia, da própria alma.

Ao finalizar este artigo me vêm à mente as palavras de dois dos baluartes da nossa ciência ocidental contemporânea: Darwin e Einstein. O primeiro dizia que na natureza (sistema aberto e complexo) sobrevivem não os mais fortes nem os mais espertos, mas os mais capazes de se adaptar. Ou seja: na vida, sobrevêm os que seguem o fluxo da própria vida, e ela muda. O segundo concluiu pela física que não há distinção entre energia (espírito) e matéria (corpo), afinal "Energia é igual a massa vezes movimento ao quadrado" ou E=mc². Só estamos vivos, nesse planeta, porque não estamos perto nem longe demais do sol.

Renato Kress
Diretor do Instituto ATENA
Criador do Treinamento registrado A Jornada do Herói®