segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

Entrevista sobre a Jornada do Herói® - Parte um.

Qual a utilidade do treinamento A Jornada do Herói?

Renato Kress (RK): Olhe ao seu redor agora. O que é "natural" e o que é "criado" pelas mãos, idéias e sonhos dos homens? Pense em termos de comportamentos, instituições sociais, roupas, idiomas, sotaques, alimentação, formas de sentar, comer, amar. Quase tudo é criado. Beber em um copo ou em uma tigela é uma escolha cultural. Muitas vezes não nos damos conta disso porque estamos imersos numa cultura determinada e achamos que todo o mundo é ou "deveria ser" assim. O problema dessa questão é que muitas vezes, na correria do dia a dia, não nos damos conta de que vivemos sobre a tirania dos mortos. A utilidade maior da Jornada do Herói é trazer a responsabilidade sobre os nossos atos, nossas escolhas e atitudes para nós mesmos, é assumirmos o fardo de sermos os criadores do sentido para a narrativa das nossas vidas. Existem várias outras aplicações práticas da Jornada em criatividade, pensamento estratégico, gestão empresarial, reestruturação de vida, mas o principal está sempre na escolha, na responsabilidade, no mérito.

Você falou sobre "tirania dos mortos", o que é isso?

Émile Durkheim
RK: Tirania dos mortos é uma expressão que saiu agora, mas a base dela é uma expressão do que o Sociólogo Émile Durkheim chamava de "poder dos mortos sobre os vivos", que não tem nada de sobrenatural, é só a concepção de que tudo o que vivemos, as instituições, idéias e conceitos em que acreditamos, as regras que regem nosso comportamento social, cultural, familiar, afetivo etc, foram criadas por pessoas que já faleceram a muitos anos, pessoas que viviam numa sociedade completamente diversa da nossa, com problemas e questões completamente diferentes e, ao mesmo tempo, muito semelhantes.

A tirania dos mortos é essa situação social em que vivemos nossa vida segundo as regras ditadas por outras pessoas, especificamente pessoas que já faleceram. É quando jogamos (o termo em psicologia é "projetamos") a autonomia sobre nossas vidas para os "costumes", "leis", "regras" que foram criadas e ditadas há anos por outras pessoas, que viviam literalmente em outro mundo. Parte importante da Jornada do Herói, na verdade a primeira parte do treinamento - chamada 'Paidea' -, é justamente deixar isso bem claro para os nossos heróis. Fazer uma pergunta cuja resposta não pode ser um constrangimento interno: "Quem é o eixo-doador de sentido para a narrativa da sua vida?".

Isso quer dizer que o treinamento é contra as tradições, costumes, leis?

RK: Claro que não! De forma alguma! Isso quer dizer que o treinamento busca ensinar duas coisas importantíssimas: Autonomia e responsabilidade. Para sermos autônomos, para pensarmos por nós mesmos e para podermos tomar decisões baseadas em nossos crivos internos precisamos primeiro perceber o que é nosso e o que é imposto "de fora", seja pela sociedade, família, ambiente de trabalho, amigos, convenções sociais... percebendo o que é imposto de fora, por quem e, principalmente, porquê é imposto - a razão daquela imposição de idéias, de pensamentos e comportamentos, de modismos, de opiniões -, é que poderemos decidir aceitar ou não aquela idéia, agir ou não de acordo com aquele comportamento. Não há nada de errado em seguir um comportamento tradicional, desde que essa escolha tenha sido completamente sua, consciente e clara. Só aí há o mérito.

O mérito de um civil de sobe as escadas de um prédio em chamas para salvar uma criança pode ser considerado maior que o de um bombeiro que tenha feito a mesma coisa. Porque ele não tinha o treinamento necessário, porque ele não tinha acesso ao material necessário, mas principalmente porque não se esperava isso dele. Esperava-se que ele ligasse para os bombeiros, que ele se importasse primeiro consigo mesmo do que com a criança, que ele se acovardasse diante das chamas... heroísmo é medido em mérito e mérito é medido por essas expectativas, também.

Enfim, nada contra as tradições. Só a favor da escolha consciente em segui-las ou não. Mesmo saber quando romper uma tradição - ainda que mantendo muitas das suas orientações iniciais - é um ato divino. A obra maravilhosa do Rabino Nilton Bonder - "A Alma Imoral" - brincando filosoficamente entre os binômios "tradição-traição" trata genialmente do tema. Em certo sentido o carnaval é uma "traição" à "tradição" dos dias santos, mas é completamente necessário, inclusive para a manutenção da saúde mental de uma sociedade. Rigidez em excesso cristaliza em posturas como o nazismo da mesma forma como fluidez em excesso causa uma letargia enorme na sociedade, que não se levanta e não combate por nada, mesmo quando a causa é justa. Já dizia Apolo, em seu Oráculo na cidade de Delfos: "Méden Ágan" (nada em excesso).

Como era essa questão do Oráculo de Delfos? Isso tem a ver com a Jornada do Herói?

RK: Tem sim. Tudo a ver. Em um sentido simbólico. A palavra símbolo, vem do grego 'symbolón' que era um disco pequeno com duas partes, como se fosse um medalhão. Esse 'symbolon' teria frente e verso, como uma moeda. Então quando digo que o Oráculo de Delfos tem um sentido simbólico na Jornada do Herói quero dizer justamente que ele tem um caráter digamos "positivo" e um caráter "negativo" também. O caráter positivo é própria ideia de que haja um centro para onde as pessoas recorrem quando a vida delas perde o sentido. A idéia da existência desse centro é importante. Acreditar que haja um centro que pode nos indicar os caminhos a seguir, as decisões a tomar é importante.

Oráculo de Delfos,
pegadinha existencial...
Agora lembra o que eu disse sobre a questão da autonomia? Pois é. Aí é que está o outro lado do símbolo do Oráculo de Delfos. Todos os heróis gregos que foram ao Oráculo de Delfos tiveram um fim trágico ou uma batalha mortal onde perderam - ou tiveram de abrir mão - de partes importantes do que acreditavam que era "a sua vida". Heróis trágicos são em geral os que foram a Delfos buscar orientação. Por que isso? Porque quando projetamos nossas escolhas, nossa responsabilidade e nosso mérito em outro centro que não nós mesmos - no caso indo buscar respostas para a minha vida num lugar exterior a mim mesmo, Delfos - perdemos contato com o que há de mais íntimo em nós e abrimos mão do que caracteriza o herói, o mérito pela responsabilidade sobre os próprios atos. Aquela questão que falamos antes.

Mas por que as pessoas iam a Delfos fazer perguntas?

Herói questionando à sacerdotisa
(Pítia), no Oráculo de Delfos
RK: Essa é a melhor pergunta! Existem duas respostas para ela: a mitológica e a social. A social é a que nos interessa aqui, mas eu vou contar um pedaço do mito também, claro. A social é que heróis e pessoas comuns, reis e cidadãos iam ao Oráculo porque os pais dos pais de seus pais iam. Era uma tradição. Já perguntei à minha mãe porque ela acorda e liga a televisão e, depois de um tempo conversando, vi que a minha avó fazia isso. Veja, não estou julgando, até porque não me cabe. Estou apenas observando um padrão de comportamento de pessoas queridas e próximas a mim para depois perceber se eu faço o mesmo e aí sim julgar, para mim, se eu, Renato, quero seguir esse padrão ou não. O julgamento é sempre interno e referente à minha vida, nunca à alheia. Depois de perceber esse padrão interno, familiar, eu comecei a ver menos televisão, a definir melhor o que eu queria ver e o que eu não queria e não mais a deixar ela ligada direto. Hoje em dia eu nem vejo mais televisão, mas isso foi um processo lento de escolha autônoma pela internet como meio principal. Funciona para mim.

Gaia, Deusa Terra
Mas você me perguntou do mito sobre o Oráculo de Delfos. Ele responde também porque as pessoas iam tantas vezes a ele para "dar sentido à narrativa de suas vidas", que é um dos temas principais - se não for o tema principal da Jornada do Herói. Vou contar o mito sumariamente: Toda a terra, para os gregos, era o corpo de uma divindade feminina deitada. Os gregos, como se sabe, possuíam verdadeiro fascínio pela simetria e pelas formas, principalmente pela ideia de centro. Pois bem, qual o centro de um corpo? O umbigo, certo? Ele fica bem no meio. O Oráculo da cidade de Delfos, segundo os gregos, havia sido construído sobre uma pedra chamada "Ônfalos" ("umbigo", em português). Eles realmente acreditavam que o templo do Oráculo havia sido construído no centro do mundo, em cima do umbigo da Gaia! Além disso há outras histórias sobre o simbolismo do Oráculo. O deus responsável pelo Oráculo era Apolo que havia assassinado ali, em Delfos, a serpente Píton, repetindo o padrão que seu pai Zeus havia iniciado ao eliminar o dragão-serpente Tífon, respectivamente neto e filho de Gaia. Conto esses e outros mitos com mais detalhes e trabalho sobre eles durante a Jornada do Herói e agora terei ainda mais possibilidades de trabalhá-los no curso de mitologia on-line que estou abrindo por requisição dos meus ex-alunos da Jornada, que ficam fascinados com o universo mítico.

Então o Oráculo de Delfos, hoje em dia seria o quê exatamente?

Deus-Mercado
RK: Isso depende de você. Pode ser o "Todo-Poderoso Deus-Mercado" que vai decidir qual a faculdade é mais rentável para você agora, que vai acordar um dia eufórico, no outro depressivo, que vai julgar, condenar e absolver nações inteiras segundo as regras que mudam ao bel prazer dele. Pode ser esse tipo de tirano louco ensandecido que vai te socializar a ser agressivo, pró-ativo, combativo, hipercompetitivo, empreendedor, inquieto, eternamente carente, inseguro e por aí vai. Você fez uma cara engraçada quando eu disse "carente", é claro que é carente! Quem mais seria capaz de consumir desenfreadamente senão um ser humano radicalmente carente? É preciso que hajam carências intermináveis a suprir as necessidades de venda de um "Todo-Poderoso Deus Mercado" insaciável. Bem esse pode ser um Oráculo. Você pode tirar as suas respostas daí. Muita gente tem feito. E você vê o mundo no qual estamos vivendo...

Outro Oráculo possível hoje em dia é a "Toda Poderosa grande Mídia" que vai dizer que você tem que ficar em casa, ligar a tevê e não se socializar com outras pessoas, porque o mundo está muito perigoso, porque a "sensação de insegurança" e o "clima de violência" ou a "onda de medo" estão muito fortes e é melhor ficar em casa e - porque não? - ver mais um programinha de 10 minutos amassado entre 20 minutos de comerciais. Você também pode tirar as suas respostas daí.

Ao longo do treinamento da Jornada do Herói nós falaremos de outros oráculos, mas no geral acho que dá para perceber o quão trágico é seguir por eles. O quão problemático pode ser projetar tua autonomia e buscar orientação nesses lugares. Minha aposta pessoal e minha aposta como treinador é que o crivo interno, ser o eixo de sua própria vida, é mais interessante.

Pelo que entendi então a Jornada do Herói é um treinamento para desenvolver a autonomia e o mérito. Mas como isso é feito?

RK: O treinamento é dividido em quatro partes: Paidea, Katábasis, Anagnosis, Apoteosis. Essas partes são termos da jornada do herói mítico grego clássico e significam: Aprendizado ou preparação, mergulho nas trevas, autoconhecimento e encontro com os deuses.

Seguir o líder ou ser o SEU PRÓPRIO líder?
Na Paidéa temos o momento da "grande dúvida". É desconcertante para muitos heróis, no início. Na Katábasis temos o mergulho nas trevas, enfrentar os limites, crenças e valores que não são propriamente nossos, para retirar deles o que nos seja útil e descartar (matar e eliminar o grande dragão) tudo o que não concordamos ou que não nos traga nada de bom ou que nos limite a pensar de novas formas, a inovar. Na Anagnosis começaremos a usar a energia psíquica presente nos arquétipos (deuses gregos) conscientemente para criar novos projetos para a nossa vida, nossos negócios, nossa existência, e na apoteosis iremos além, nos preparando para levar esses projetos, negócios, enfim essa vida nova para o mundo "lá fora", porque o treinamento da Jornada é um laboratório. A vida real, o desafio real, se processa "lá fora", no cotidiano que devemos preencher de significado e vida!

Até agora estivemos conversando só sobre a Paidea, sobre o que acontece no início da Jornada, que é justamente essa parte do treinamento em que começamos a duvidar do que vem "de fora", duvidar que vivamos no "melhor dos mundos possíveis" e que todas as idéias já foram pensadas, todas as melhores alternativas já foram tentadas e que não há nada mais útil e funcional do que nos resignarmos com as respostas que vêm "de fora", do Mercado, da Mídia, da Moda, etc. Só acreditando que outras realidades são possíveis, outro sistema de valores, outros comportamentos, outras individualidades são possíveis é que poderemos realmente inovar e instaurar algo de significativo e novo no mundo. Steve Jobs, se não acreditasse em tecnologia portátil com baterias de longa duração não teria criado o império da Apple, Jung se não acreditasse que os mitos eram mais que historinhas de povos primitivos e que significavam padrões de comportamento típicos do ser humano - seja ele japonês, norte-americano, brasileiro ou nigeriano - não teria desenvolvido a genial psicologia analítica, Einstein se não tivesse duvidado da noção de espaço e de tempo newtonianos que era a única aceita em seu tempo, não teria desenvolvido a teoria da relatividade, Mahatma Gandhi não teria libertado a Índia do império britânico se não duvidasse de que aquilo era inevitável e não teria feito da forma que fez, sem dar um tiro, se não acreditasse que isso era plenamente possível. Essa é a primeira parte da Jornada do Herói, duvidar para acreditar.

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Fim da primeira parte da entrevista, a seguir: Katábasis, o caminho do herói e as noções de compromisso e desafio.