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terça-feira, 10 de abril de 2012

A Mente do Herói na Jornada

Trabalhar com a Jornada do Herói é ter a fantástica possibilidade de observar, dia a dia, a maravilhosa potência dos conteúdos da mente e buscar criar - esforço e tarefa heróica - um fluxo criativo e orientado de ações com essas energias. Ações orientadas por uma meta bem estipulada. Para que as ações ocorram, para que os heróis da Jornada possam liberar a energia psíquica necessária para transformar em ato as decisões e planificações efetuados no início da Jornada, é preciso que façamos o mesmo caminho que todo herói em toda mitologia mundial fez: liberar o potencial da libido(energia psíquica) no inconsciente.

As águas retidas
Em várias tradições mitológicas ao longo da história da humanidade veremos a questão da retensão e liberação das "águas do mundo". Na Índia esse é o tema central da mitologia de Indra (o equivalente hindu do Zeus grego): O dragão-serpente Vritra rompe o fluxo natural da vida no universo ("Rita" é o nome desse fluxo que ele rompe) ao prender as "águas do mundo" e então Indra, a divindade do raio, do trovão e das tempestades, tem de abatê-lo com um raio para que o fluxo das águas seja liberado e restabelecido.

É preciso uma iluminação (raio) orientada da consciência (Indra) para que o fluxo poderoso da energia psíquica (águas primordiais) possa jorrar naturalmente e começar a recriar e restabelecer a nossa energia criativa e o nosso contato com a dinâmica natural do movimento da nossa psique. É a isso que as mitologias ao redor do mundo chamam de restabelecer a "Ordem do Mundo". Por isso Zeus faz o mesmo derrotando o dragão-serpente Tífon e, posteriormente, Apolo, um dos filhos de Zeus, faz o mesmo derrotando o dragão-serpente Píton, filho de Tífon. São gerações efetuando o mesmo gesto simbólico de salvaguardar seu poder de contenção e liberação das energias que passam pelo eixo do ser.

Quando Zeus mata Tífon - depois de ter seus tendões dos calcanhares arrancados por essa criatura e recosturados por seu filho Hermes - ele restabelece a nova ordem no mundo, onde ele se coloca como governante. Psiquicamente é a consciência adquirindo poder sobre a dimensão inconsciente e orientando sua iluminação e ação através do foco (raio).

Esse processo ocorre na Jornada do Herói de forma constante através de suas quatro etapas: Paideia, Katábasis, Anagnosis e Apoteosis.

Paidéia, a dúvida elementar
Na Paidéia, fase que chamamos também de "educação iniciática" aprendemos a olhar o mundo com novos olhos e a perceber os valores e crenças que são as fundações do nosso mundo e da representação de universo que fazemos. Lembrando que, de acordo com a programação neurolingüística, nós não reagimos ao mundo e sim à representação que temos desse mundo. A realidade, em si, não é acessível a nós nem a ninguém. Vemos o mundo através das nossas experiências nesse mundo, das nossas próprias crenças e valores, nos nossos filtros internos, da nossa cultura e da forma como fomos socializados para viver em sociedade. O fator mais importante da Paidéia, além de aprender as técnicas que serão necessárias ao longo da jornada nas demais fases, é que possamos começar a compreender que esse mundo em que vivemos foi criado por seres humanos que já não estão entre nós e que a nós cabe, hoje em dia, duvidar de forma saudável de que esse seja o melhor dos mundos possíveis. Através da dúvida surgirá a brecha para toda a criação a ser efetuada posteriormente.

É na brecha que a dúvida ria no solo das certezas cotidianas que plantaremos a semente do amanhã.

Uma das técnicas primárias da Paidéia e uma das mais importantes é justamente estabelecer, por escrito através de um caminho de perguntas bem detalhadas, a meta que temos para o curso ou para a nossa Jornada pessoal. É como definir o código genético da semente, a forma pela qual ela irá crescer.

Katabasis, penetrando nas fundações
Na Katábasis, fase que chamamos de "mergulho nas trevas", penetraremos nas fundações dessas crenças nossas e sociais, pessoais e culturais, laborais e lúdicas que formam a nossa concepção de mundo. Ali perceberemos a intenção positiva dos comportamentos que já não são mais compatíveis ou congruentes com a nossa vida atual. É natural que alguns comportamentos que funcionavam no passado não sejam mais funcionais no presente, mas ainda assim eles detêm uma certa intenção positiva, seja ela de "proteger", "salvaguardar", "manifestar suas emoções", "delimitar o seu espaço e os seus limites" e por aí vai. Na Katábasis, observando o que queremos usar para edificar nossa Jornada pessoal e o que podemos resumir à intenção positiva e descartar as cascas comportamentais que já não condizem com nossa idade, vida ou atmosfera, podemos começar a reintegrar e fortalecer as fundações desde abaixo.

Nesse mergulho nós revisitamos conteúdos internos nossos e reintegramos cada um deles, ou pelo menos suas intenções positivas ao que pretendemos para daqui por diante.

Anagnosis, o que vês ao nascer
Na Anagnosis, fase que também chamamos de "conhece-te a ti mesmo", usamos arquétipos e mitos gregos como filtros ou mentores para observar nossa Jornada, nossas metas, projetos e planos. Através desse filtro energético a mente do herói começa a reconectar-se à sua vida do cotidiano, mas de uma forma completamente nova, plena de energia e discernimento. O mergulho na Katábasis ampliou o gradiente energético, liberando a libido para que possamos usá-la em favor de nossas próprias demandas, mas de forma criativa e equilibrada. Trabalhamos especificamente a questão do equilíbrio dinâmico na execução de nossas técnicas nessa fase da Jornada. Equilíbrio dinâmico é a noção de que não precisamos estar estáticos ou imoveis dentro de um estado paradisíaco da mente, mas que na avalanche de atos e circunstâncias do dia a dia precisamos "dançar ao som da música" sem nunca perdermos a consciência de nosso eixo e de nosso foco.

Na Anagnosis a mente criativa enraíza-se para dentro do cotidiano, levando consigo de forma potencializadora, criativa e centrada a estrutura do dna criada na nossa meta estabelecida na Paidéia, na primeira etapa de nossa Jornada.

Apoteosis, encontro com os deuses
Na Apoteosis extravasamos nossas energias para o resto do mundo. A energia telúrica (da terra) que remexemos e "cozinhamos" na Katábasis e que nos impulsionou para a consciência de uma forma mais íntegra e coerente para renascermos na Anagnosis, onde usamos essa libido (essa energia psíquica) como uma tinta para tatuar os atos de nosso dia a dia como se deixássemos a cada passo um pouco de nós mesmos e reconstruíssemos o universo ao nosso redor não só à nossa imagem e semelhança, mas observando nos olhos dos que nos cercam tendo a consciência de que observamos os demais deuses responsáveis pela manutenção desse firmamento em que estamos. São técnicas que ampliam e excitam o que temos de criativo, potencializador, amoroso e tolerante em nós.

É essa a viagem da mente do Herói na Jornada, um mergulho profundo que antecede um salto quântico.

Texto por: Renato Kress

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

A serpente e a semente

Estar Vivo

A única razão para viver é estar completamente vivo;
e você não pode estar completamente vivo se está esmagado por um medo secreto
e oprimido pela ameaça: Ganhe dinheiro, ou coma merda!
E forçado a fazer mil coisas sórdidas, piores do que sua natureza,
e forçado a se agarrar às suas posses na esperança de que elas o façam sentir-se seguro,
e forçado a observar cada pessoa que se aproxima com medo de que ela o derrube.

Sem um pouco de confiança uns nos outros, não conseguimos viver.
No fim, ficamos loucos.
É o castigo do medo e da mesquinhez, sermos piores do que nossa natureza.

Para estar vivo você deve sentir um fluxo generoso,
e sob um sistema competitivo isso é impossível, na verdade.
O mundo está aguardando novo e grande movimento de generosidade,
ou por uma grande onda de morte.
Precisamos mudar o sistema e fazer a vida livre para todos os homens,
ou veremos os homens morrerem, e então morrermos nós mesmos. - William Blake


Serpentes
Semana passada, lendo sobre Zeus para um trabalho do Instituto ATENA, depois de ler mais de dez capítulos do Gênesis, católico, me peguei pensando na imagem da serpente. Na Teogonia, poema épico do poeta grego Hesíodo, Zeus luta contra Tífon, um dragão (serpente alada) de cem cabeças que nasce de Gaia, deusa-terra. No Gênesis católico Yahvéh (o Deus hebraico) pune Adão e Eva por dar ouvidos à serpente e comer do fruto proibido. Então me dei conta de que em outra leitura, dos vedas, a divindade Indra (o "Zeus" dos hindus) elimina a "serpente cósmica" Vritra e que na Babilônia o deus Marduk elimina o dragão (mais uma serpente voadora) Tiamat, cada um deles dando origem a uma nova ordem do mundo.

Aspectos da nova ordem:
Politicamente essa nova ordem, com a instauração de uma nova divindade, poderia significar a chegada de levas populacionais num determinado espaço de terra, ou a emergência de uma nova camada da população que agora tomava a rédea daquela sociedade nas mãos. Psicologicamente esses reis ou deuses solares que vencem dragões representam o domínio da consciência sobre as forças das trevas, do inconsciente. Culturalmente poderia significar um movimento de saída de uma cultura de cunho matriarcal para uma cultura de cunho patriarcal, com as vantagens e desvantagens próprias das duas.

A serpente e o homem
O importante, aqui, é perceber que, no ocidente, é comum que a imagem da serpente, como a do dragão esteja associada à própria contrariedade do homem. Enquanto o homem está situado no final de um longo esforço genético, a serpente, essa criatura fria, sem patas e sem pêlos, está no início dele. Homem e serpente, em um certo sentido, são rivais ou, simbolicamente, complementares: Enquanto o homem representa a psique evoluída, superior, a serpente representa a psique inferior, obscura, rara e incompreensível, a parcela misteriosa de nossas mentes.

Serpente, alma, libido
A serpente, para alguns autores como André Viril, não passa de uma linha, mas uma linha viva. Uma abstração, mas uma abstração encarnada. A linha, se levarmos em consideração a matemática de Pascal, não tem início nem fim, e, quando se move, torna-se passível de todas as representações e metamorfoses. Dela, só enxergamos a parte exposta, manifesta e sabemos que ela continua.

Segundo Chevalier "A serpente visível é uma hierofania do sagrado natural, não espiritual, mas material.". Do seu comportamento podemos fazer observações sobre o tempo, que escorre como uma serpente, do espaço e das regras, de onde ela se refugia pelo "mundo de baixo", aquele buraco obscuro de onde ela surge e por onde ela se esvai, a fenda ou rachadura.

Essa serpente enigmática, secreta, age como nosso inconsciente. É impossível prever suas decisões, súbitas como seus ataques. Existe em várias culturas a imagem de um poço ou fosso recheado de serpentes, onde todas elas formariam, juntas, uma única multiplicidade primordial, uma coisa indivisível que não cessaria de enroscar-se e desenroscar-se, desaparecer e renascer. É uma das imagens mais conhecidas e autoexplicativas para a dinâmica do inconsciente.

Serpente-vida
Os Caldeus usavam a mesma palavra para vida e para serpente. Em árabe, a serpente é el-hayyah e a vida, el-hayat, sendo que um dos nomes de Deus é El-hay, ou aquele que traz a vida, o vivificante. Quando as religiões solares - entre elas o catolicismo - engendram um "Deus do Céu" que entra em combate com uma divindade da terra - a cobra, uma serpente, um dragão marinho como o Leviatã bíblico, etc - elas criam uma dissolução entre matéria e espírito que é danosa para ambos.

Na maior parte das mitologias, após a vitória sobre a serpente-dragão, a divindade do Céu consagra ou interioriza um aspecto da divindade da terra. Quando Zeus elimina Tífon ele ergue um templo em sua homenagem, gesto primordial imitado por Apolo - divindade de caráter solar que elimina Píton, serpente que nasce do corpo putrefato do dragão Tífon - que ergue o Oráculo de Delfos sobre o corpo da serpente mítica eliminada por suas flechas. Atená, após auxiliar o herói Perseu na vitória contra a górgona Medusa (sob cuja cabeça dançavam serpentes vivas no lugar de mechas de cabelo), coloca a cabeça dela sob sua égide, seu escudo, e, através dele, passa a paralisar de medo seus adversários.

Enantiodromia, Esquizofrenia e Saúde mental
A serpente, na sua característica de mudar de pele, é símbolo da vida que se renova enquanto passa e, também, da imortalidade. O ocidente começa a operar um corte com as tradições míticas quando elimina a serepente - o princípio da vida, princípio de mudança e imortalidade - sem se apropriar das características positivas do símbolo. Quando Yahveh simplesmente pune e descarta a serpente ele tira do homem (Adão) a sua imortalidade primordial tanto quanto o tantrismo redescobre a serpente, a Kundalini, enroscada na base da coluna vertebral, ele redescobre esse fluxo da vida.

A "perfeição" intolerante
Pode ser lindo, mas é só um pólo.
Todo absoluto é patológico.
O ideal de perfeição solar, imóvel, incorruptível, onisciente, onipresente e onipotente muitas vezes não dá lugar à naturalidade do perverso, do sujo, do morto, do erro. É um ideal totalitário que muitas vezes não enxerga ou até procura eliminar tudo o que seja diferença ou movimento, tudo o que seja natural da própria vida. Vivemos numa sociedade onde a assepsia domina e somos levados a acreditar que é um mundo saudável, onde separamos e analisamos e buscamos dominar o universo ao redor, afinal, crescemos ouvindo que a natureza da matéria é o pecado e a do espírito a evolução, enfim que "a matéria é ruim e o espírito é bom, belo e justo".

O psicólogo suíço Carl Gustav Jung, obcecado pelo estudo da dimensão inconsciente de nossas mentes, trouxe da alquimia medieval o termo "enantiodromia", que significa que  superabundância de uma força produz seu inverso. O excesso de limites de uma sociedade dará ensejo a uma nova geração libertária tanto quanto uma geração excessivamente liberal tenderá a gerar filhos reacionários e tradicionalistas. A enantiodromia - que pode ser compreendida historicamente por uma análise dialética de caráter hegeliano - é um processo de cristalização da psique que é danoso ao fluxo normal da energia psíquica, que é o que mantém a saúde mental. É preciso que a energia flua, que as idéias mudem, que os conceitos se transformem, que os pensamentos, como as serpentes, se livrem das cascas carcomidas pelo tempo, ainda que mantendo sua intenção positiva primordial, seu intento primário.

Quando cortamos a ligação entre as idéias (dimensão aérea) e a matéria (dimensão terrestre) não só damos vazão a condutas danosas para o nosso meio ambiente - qual o problema em devastar, aniquilar, extinguir espécies vegetais e animais se a matéria é eminentemente, ruim? - como também efetuamos um corte, uma esquizofrenia (em grego σχιζοφρενία; σχίζειν, "dividir"; e φρήν, "phren", "phrenés", no antigo grego, parte do corpo identificada por fazer a ligação entre o corpo e a alma) que nos leva a priorizar o espírito em detrimento da matéria, ou a crer que um seria essencialmente superior a outro. Esse corte, essa esquizofrenia, esse matar a serpente sem apropriar-se de suas qualidades positivas, é o germe de todo totalitarismo, de toda unilateralidade que procura justificar a morte da vida enquanto mudança perpétua e a torna berço de todas as intolerâncias, preconceitos e discriminações.

A Jornada, o mergulho, a serpente
Na segunda fase do treinamento A Jornada do Herói, no momento da Katábasis, do mergulho nas trevas, entramos em contato com a nossa "Hidra de Lerna" pessoal, com o dragão "Fafnir" que Siegfried (nosso ego heróico) elimina na floresta (representação do inconsciente, da dimensão misteriosa de nossa mente), mas, acima de tudo, aprendemos que Hércules, quando matou a Hidra, tornou-se um pouco a própria Hidra, quando molhou suas flechas no veneno mortal que escorria do pescoço dessa serpente do pântano de Lerna ou que Siegfried, ao matar Fafnir, bebeu do sangue que jorrava do pescoço do dragão-serpente e, desde então passou a ouvir o "chamado da natureza" e conhecer as línguas de todos os animais. Ignorar a dimensão ctônica (subterrânea) e telúrica (terrestre) é ignorar a própria vida em sua dimensão mutável e flexível, em sua dimensão adaptável. É abrir caminho para uma dimensão solar de isolamento, intolerância e rejeição do corpo e, por enantiodromia, da própria alma.

Ao finalizar este artigo me vêm à mente as palavras de dois dos baluartes da nossa ciência ocidental contemporânea: Darwin e Einstein. O primeiro dizia que na natureza (sistema aberto e complexo) sobrevivem não os mais fortes nem os mais espertos, mas os mais capazes de se adaptar. Ou seja: na vida, sobrevêm os que seguem o fluxo da própria vida, e ela muda. O segundo concluiu pela física que não há distinção entre energia (espírito) e matéria (corpo), afinal "Energia é igual a massa vezes movimento ao quadrado" ou E=mc². Só estamos vivos, nesse planeta, porque não estamos perto nem longe demais do sol.

Renato Kress
Diretor do Instituto ATENA
Criador do Treinamento registrado A Jornada do Herói®

terça-feira, 10 de janeiro de 2012

Serendipity: Pronto e disperso


Esse ano se eu pudesse escolher uma palavra para todos os clientes, amigos e familiares, seria “Serendipity”. Serendipity é um termo inglês criado por uma corruptela lingüística da palavra “Sarandwypha”, que é o antigo nome da ilha do Ceilão (antigo Sri Lanka). É um tipo de Jornada heróica em que a aventura começa justamente quando o protagonista está simultaneamente “pronto e disperso”, só então, num momento de insana lucidez, ele percebe todo um novo mundo que sempre esteve ali...
Ciência e literatura
O termo "Serendipity" (ou em português "serendipidade") foi cunhado pelo escritor Britânico Horace Walpole a partir do conto "Os três Príncipes de Serendip". Nessa história os três príncipes viviam fazendo descobertas ao acaso, levados principalmente por suas mentes abertas ao inesperado.

Na história da ciência, muitos foram os casos de "Serendipity": A descoberta da Penicilina por Alexandre Fleming, Arquimedes com os fundamentos da hidrostática, Tales de Mileto na descoberta do elétron e muitos outros.

Mitos e Jornadas
Em mitologia são várias as histórias em que um herói sai à caça de um animal com alguma característica especial, como um pássaro com chifres, um javali branco, um leão anormalmente grande etc, ou mesmo corre a mata atrás de uma erva mágica ou artefato específico e, subitamente, vê-se num novo mundo, um espaço totalmente desconhecido onde, a partir de então, sua tarefa será desbravar esse novo mundo ou tentar regressar para o mundo conhecido.

Essas jornadas, em geral, têm uma característica centrífuga no início e centrípeta no fim. O herói fasta-se de um centro ordenador, de uma ordem estabelecida, rumo a um novo centro, seja ele criado ou o mais comum,  descoberto por acaso num momento em que o herói "pronto" - treinado, hábil - está distraído. Como quando  depois de uma longa batalha o grande guerreiro, exausto, limpa o rosto num rio e, distraidamente, vislumbra nas águas turvas as luzes translúcidas de uma cidade submersa.

Olhares
Quando olhamos o mundo com novos olhos, tudo parece novo, assustadoramente mágico e diferente. A novidade pode ser excitante ou pavorosa, ou simultaneamente sedutora e mortal. Sair do espaço conhecido, sair do centro delimitado de nossa cultura, das nossas convenções e percepções é uma tarefa heróica, é empreender uma jornada. A diferença entre a Jornada clássica e a Serendipity é que nessa última tudo parece ocorrer como que "por acaso", por "obra do destino". Mas apenas parece.

Prepare-se! Relaxe... Olhe!
Para viver uma Serendipity é necessário estar preparado, tornar-se hábil e exercitar a percepção. Ver além do que está implícito é um exercício conhecido como "olhar antropológico", o olhar que não toma por "natural" quase nada, que observa os jogos e as dinâmicas psíquicas, sociais, sexuais, familiares e culturais por trás do mais simples gesto. Um olhar que procura a fonte do gesto e se pergunta se não é possível satisfazer os desejos implícitos naquela fonte de outra maneira, por outras vias, formas, idéias. É um olhar que cria e recria o mundo, um olhar que inova e transcende aquilo que está posto. O olhar que desejo a todos.

Desejo aos meus clientes, heróis, amigos e colaboradores do Instituto ATENA, um ano de descobertas sensacionais, de prontidão dispersa, de alegria de viver e de criatividade no olhar. Que todo um novo mundo desabroche diante dos teus olhos maravilhados e traga com ele o elo entre o melhor de si e o melhor a fazer.

Texto: Renato Kress
Diretor do Instituto ATENA

segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

Entrevista sobre a Jornada do Herói® - Parte um.

Qual a utilidade do treinamento A Jornada do Herói?

Renato Kress (RK): Olhe ao seu redor agora. O que é "natural" e o que é "criado" pelas mãos, idéias e sonhos dos homens? Pense em termos de comportamentos, instituições sociais, roupas, idiomas, sotaques, alimentação, formas de sentar, comer, amar. Quase tudo é criado. Beber em um copo ou em uma tigela é uma escolha cultural. Muitas vezes não nos damos conta disso porque estamos imersos numa cultura determinada e achamos que todo o mundo é ou "deveria ser" assim. O problema dessa questão é que muitas vezes, na correria do dia a dia, não nos damos conta de que vivemos sobre a tirania dos mortos. A utilidade maior da Jornada do Herói é trazer a responsabilidade sobre os nossos atos, nossas escolhas e atitudes para nós mesmos, é assumirmos o fardo de sermos os criadores do sentido para a narrativa das nossas vidas. Existem várias outras aplicações práticas da Jornada em criatividade, pensamento estratégico, gestão empresarial, reestruturação de vida, mas o principal está sempre na escolha, na responsabilidade, no mérito.

Você falou sobre "tirania dos mortos", o que é isso?

Émile Durkheim
RK: Tirania dos mortos é uma expressão que saiu agora, mas a base dela é uma expressão do que o Sociólogo Émile Durkheim chamava de "poder dos mortos sobre os vivos", que não tem nada de sobrenatural, é só a concepção de que tudo o que vivemos, as instituições, idéias e conceitos em que acreditamos, as regras que regem nosso comportamento social, cultural, familiar, afetivo etc, foram criadas por pessoas que já faleceram a muitos anos, pessoas que viviam numa sociedade completamente diversa da nossa, com problemas e questões completamente diferentes e, ao mesmo tempo, muito semelhantes.

A tirania dos mortos é essa situação social em que vivemos nossa vida segundo as regras ditadas por outras pessoas, especificamente pessoas que já faleceram. É quando jogamos (o termo em psicologia é "projetamos") a autonomia sobre nossas vidas para os "costumes", "leis", "regras" que foram criadas e ditadas há anos por outras pessoas, que viviam literalmente em outro mundo. Parte importante da Jornada do Herói, na verdade a primeira parte do treinamento - chamada 'Paidea' -, é justamente deixar isso bem claro para os nossos heróis. Fazer uma pergunta cuja resposta não pode ser um constrangimento interno: "Quem é o eixo-doador de sentido para a narrativa da sua vida?".

Isso quer dizer que o treinamento é contra as tradições, costumes, leis?

RK: Claro que não! De forma alguma! Isso quer dizer que o treinamento busca ensinar duas coisas importantíssimas: Autonomia e responsabilidade. Para sermos autônomos, para pensarmos por nós mesmos e para podermos tomar decisões baseadas em nossos crivos internos precisamos primeiro perceber o que é nosso e o que é imposto "de fora", seja pela sociedade, família, ambiente de trabalho, amigos, convenções sociais... percebendo o que é imposto de fora, por quem e, principalmente, porquê é imposto - a razão daquela imposição de idéias, de pensamentos e comportamentos, de modismos, de opiniões -, é que poderemos decidir aceitar ou não aquela idéia, agir ou não de acordo com aquele comportamento. Não há nada de errado em seguir um comportamento tradicional, desde que essa escolha tenha sido completamente sua, consciente e clara. Só aí há o mérito.

O mérito de um civil de sobe as escadas de um prédio em chamas para salvar uma criança pode ser considerado maior que o de um bombeiro que tenha feito a mesma coisa. Porque ele não tinha o treinamento necessário, porque ele não tinha acesso ao material necessário, mas principalmente porque não se esperava isso dele. Esperava-se que ele ligasse para os bombeiros, que ele se importasse primeiro consigo mesmo do que com a criança, que ele se acovardasse diante das chamas... heroísmo é medido em mérito e mérito é medido por essas expectativas, também.

Enfim, nada contra as tradições. Só a favor da escolha consciente em segui-las ou não. Mesmo saber quando romper uma tradição - ainda que mantendo muitas das suas orientações iniciais - é um ato divino. A obra maravilhosa do Rabino Nilton Bonder - "A Alma Imoral" - brincando filosoficamente entre os binômios "tradição-traição" trata genialmente do tema. Em certo sentido o carnaval é uma "traição" à "tradição" dos dias santos, mas é completamente necessário, inclusive para a manutenção da saúde mental de uma sociedade. Rigidez em excesso cristaliza em posturas como o nazismo da mesma forma como fluidez em excesso causa uma letargia enorme na sociedade, que não se levanta e não combate por nada, mesmo quando a causa é justa. Já dizia Apolo, em seu Oráculo na cidade de Delfos: "Méden Ágan" (nada em excesso).

Como era essa questão do Oráculo de Delfos? Isso tem a ver com a Jornada do Herói?

RK: Tem sim. Tudo a ver. Em um sentido simbólico. A palavra símbolo, vem do grego 'symbolón' que era um disco pequeno com duas partes, como se fosse um medalhão. Esse 'symbolon' teria frente e verso, como uma moeda. Então quando digo que o Oráculo de Delfos tem um sentido simbólico na Jornada do Herói quero dizer justamente que ele tem um caráter digamos "positivo" e um caráter "negativo" também. O caráter positivo é própria ideia de que haja um centro para onde as pessoas recorrem quando a vida delas perde o sentido. A idéia da existência desse centro é importante. Acreditar que haja um centro que pode nos indicar os caminhos a seguir, as decisões a tomar é importante.

Oráculo de Delfos,
pegadinha existencial...
Agora lembra o que eu disse sobre a questão da autonomia? Pois é. Aí é que está o outro lado do símbolo do Oráculo de Delfos. Todos os heróis gregos que foram ao Oráculo de Delfos tiveram um fim trágico ou uma batalha mortal onde perderam - ou tiveram de abrir mão - de partes importantes do que acreditavam que era "a sua vida". Heróis trágicos são em geral os que foram a Delfos buscar orientação. Por que isso? Porque quando projetamos nossas escolhas, nossa responsabilidade e nosso mérito em outro centro que não nós mesmos - no caso indo buscar respostas para a minha vida num lugar exterior a mim mesmo, Delfos - perdemos contato com o que há de mais íntimo em nós e abrimos mão do que caracteriza o herói, o mérito pela responsabilidade sobre os próprios atos. Aquela questão que falamos antes.

Mas por que as pessoas iam a Delfos fazer perguntas?

Herói questionando à sacerdotisa
(Pítia), no Oráculo de Delfos
RK: Essa é a melhor pergunta! Existem duas respostas para ela: a mitológica e a social. A social é a que nos interessa aqui, mas eu vou contar um pedaço do mito também, claro. A social é que heróis e pessoas comuns, reis e cidadãos iam ao Oráculo porque os pais dos pais de seus pais iam. Era uma tradição. Já perguntei à minha mãe porque ela acorda e liga a televisão e, depois de um tempo conversando, vi que a minha avó fazia isso. Veja, não estou julgando, até porque não me cabe. Estou apenas observando um padrão de comportamento de pessoas queridas e próximas a mim para depois perceber se eu faço o mesmo e aí sim julgar, para mim, se eu, Renato, quero seguir esse padrão ou não. O julgamento é sempre interno e referente à minha vida, nunca à alheia. Depois de perceber esse padrão interno, familiar, eu comecei a ver menos televisão, a definir melhor o que eu queria ver e o que eu não queria e não mais a deixar ela ligada direto. Hoje em dia eu nem vejo mais televisão, mas isso foi um processo lento de escolha autônoma pela internet como meio principal. Funciona para mim.

Gaia, Deusa Terra
Mas você me perguntou do mito sobre o Oráculo de Delfos. Ele responde também porque as pessoas iam tantas vezes a ele para "dar sentido à narrativa de suas vidas", que é um dos temas principais - se não for o tema principal da Jornada do Herói. Vou contar o mito sumariamente: Toda a terra, para os gregos, era o corpo de uma divindade feminina deitada. Os gregos, como se sabe, possuíam verdadeiro fascínio pela simetria e pelas formas, principalmente pela ideia de centro. Pois bem, qual o centro de um corpo? O umbigo, certo? Ele fica bem no meio. O Oráculo da cidade de Delfos, segundo os gregos, havia sido construído sobre uma pedra chamada "Ônfalos" ("umbigo", em português). Eles realmente acreditavam que o templo do Oráculo havia sido construído no centro do mundo, em cima do umbigo da Gaia! Além disso há outras histórias sobre o simbolismo do Oráculo. O deus responsável pelo Oráculo era Apolo que havia assassinado ali, em Delfos, a serpente Píton, repetindo o padrão que seu pai Zeus havia iniciado ao eliminar o dragão-serpente Tífon, respectivamente neto e filho de Gaia. Conto esses e outros mitos com mais detalhes e trabalho sobre eles durante a Jornada do Herói e agora terei ainda mais possibilidades de trabalhá-los no curso de mitologia on-line que estou abrindo por requisição dos meus ex-alunos da Jornada, que ficam fascinados com o universo mítico.

Então o Oráculo de Delfos, hoje em dia seria o quê exatamente?

Deus-Mercado
RK: Isso depende de você. Pode ser o "Todo-Poderoso Deus-Mercado" que vai decidir qual a faculdade é mais rentável para você agora, que vai acordar um dia eufórico, no outro depressivo, que vai julgar, condenar e absolver nações inteiras segundo as regras que mudam ao bel prazer dele. Pode ser esse tipo de tirano louco ensandecido que vai te socializar a ser agressivo, pró-ativo, combativo, hipercompetitivo, empreendedor, inquieto, eternamente carente, inseguro e por aí vai. Você fez uma cara engraçada quando eu disse "carente", é claro que é carente! Quem mais seria capaz de consumir desenfreadamente senão um ser humano radicalmente carente? É preciso que hajam carências intermináveis a suprir as necessidades de venda de um "Todo-Poderoso Deus Mercado" insaciável. Bem esse pode ser um Oráculo. Você pode tirar as suas respostas daí. Muita gente tem feito. E você vê o mundo no qual estamos vivendo...

Outro Oráculo possível hoje em dia é a "Toda Poderosa grande Mídia" que vai dizer que você tem que ficar em casa, ligar a tevê e não se socializar com outras pessoas, porque o mundo está muito perigoso, porque a "sensação de insegurança" e o "clima de violência" ou a "onda de medo" estão muito fortes e é melhor ficar em casa e - porque não? - ver mais um programinha de 10 minutos amassado entre 20 minutos de comerciais. Você também pode tirar as suas respostas daí.

Ao longo do treinamento da Jornada do Herói nós falaremos de outros oráculos, mas no geral acho que dá para perceber o quão trágico é seguir por eles. O quão problemático pode ser projetar tua autonomia e buscar orientação nesses lugares. Minha aposta pessoal e minha aposta como treinador é que o crivo interno, ser o eixo de sua própria vida, é mais interessante.

Pelo que entendi então a Jornada do Herói é um treinamento para desenvolver a autonomia e o mérito. Mas como isso é feito?

RK: O treinamento é dividido em quatro partes: Paidea, Katábasis, Anagnosis, Apoteosis. Essas partes são termos da jornada do herói mítico grego clássico e significam: Aprendizado ou preparação, mergulho nas trevas, autoconhecimento e encontro com os deuses.

Seguir o líder ou ser o SEU PRÓPRIO líder?
Na Paidéa temos o momento da "grande dúvida". É desconcertante para muitos heróis, no início. Na Katábasis temos o mergulho nas trevas, enfrentar os limites, crenças e valores que não são propriamente nossos, para retirar deles o que nos seja útil e descartar (matar e eliminar o grande dragão) tudo o que não concordamos ou que não nos traga nada de bom ou que nos limite a pensar de novas formas, a inovar. Na Anagnosis começaremos a usar a energia psíquica presente nos arquétipos (deuses gregos) conscientemente para criar novos projetos para a nossa vida, nossos negócios, nossa existência, e na apoteosis iremos além, nos preparando para levar esses projetos, negócios, enfim essa vida nova para o mundo "lá fora", porque o treinamento da Jornada é um laboratório. A vida real, o desafio real, se processa "lá fora", no cotidiano que devemos preencher de significado e vida!

Até agora estivemos conversando só sobre a Paidea, sobre o que acontece no início da Jornada, que é justamente essa parte do treinamento em que começamos a duvidar do que vem "de fora", duvidar que vivamos no "melhor dos mundos possíveis" e que todas as idéias já foram pensadas, todas as melhores alternativas já foram tentadas e que não há nada mais útil e funcional do que nos resignarmos com as respostas que vêm "de fora", do Mercado, da Mídia, da Moda, etc. Só acreditando que outras realidades são possíveis, outro sistema de valores, outros comportamentos, outras individualidades são possíveis é que poderemos realmente inovar e instaurar algo de significativo e novo no mundo. Steve Jobs, se não acreditasse em tecnologia portátil com baterias de longa duração não teria criado o império da Apple, Jung se não acreditasse que os mitos eram mais que historinhas de povos primitivos e que significavam padrões de comportamento típicos do ser humano - seja ele japonês, norte-americano, brasileiro ou nigeriano - não teria desenvolvido a genial psicologia analítica, Einstein se não tivesse duvidado da noção de espaço e de tempo newtonianos que era a única aceita em seu tempo, não teria desenvolvido a teoria da relatividade, Mahatma Gandhi não teria libertado a Índia do império britânico se não duvidasse de que aquilo era inevitável e não teria feito da forma que fez, sem dar um tiro, se não acreditasse que isso era plenamente possível. Essa é a primeira parte da Jornada do Herói, duvidar para acreditar.

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Fim da primeira parte da entrevista, a seguir: Katábasis, o caminho do herói e as noções de compromisso e desafio.

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Entre a Jornada e a Arte, conexões e concepções

O blog Areté e Timé - palavras que querem dizer "Superioridade" e "Honra", respectivamente - é um único blog destinado a unir dois treinamentos do Instituto ATENA: "A Jornada do Herói"® e "A Arte da Guerra Oriental"®, assim como o blog Liderança e Estratégia foi criado para unir os treinamentos "Liderança Corporativa e PNL"® e "Estratégia em Ação"®. Mas o que efetivamente une esses dois treinamentos?

A Jornada
A Jornada do Herói, sobre a qual já foram publicados, aqui, mais de vinte textos, é um treinamento de caráter pessoal, destinado a alinhar metas (em qualquer âmbito do herói-cliente) aos seus valores através de ferramentas criadas e patenteadas num processo que usou a transdisciplinaridade para unir mitologia grega, programação neurolingüística, psicologia analítica, antropologia, neurociência cognitiva e storytelling coach. É um treinamento único, criado através de uma integração íntima que só foi possível graças a anos de estudos e pesquisas. Mas e a "Arte da Guerra Oriental"®?

A Arte
O treinamento "A Arte da Guerra Oriental"® é um treinamento avançado em metas e resolução de conflitos que abrange a cultura política, a economia, o modo de pensar, as religiões e filosofias e as relações internacionais das três maiores culturas do oriente contemporâneo: Índia, China e Japão. Digo "avançado" porque "A Arte da Guerra Oriental"® é um treinamento que exige mais do Artista-cliente e do treinador, é um treinamento longo, com quatro meses de duração, o único treinamento de "formação" do Instituto ATENA. Para ilustrar onde, como e quando os dois treinamentos se interceptam e se completam, vou fazer algo que meus Heróis da Jornada adoram: explicar um conceito e contar uma história.

O Conceito
Yin e Yang, mais do que "passivo" e "ativo" são também conceitos de movimentos. Quando nosso coração se desinfla, levando sangue, nutrientes e oxigênio para nossas células, no momento da diástole, ou quando ele se infla, tragando o sangue que precisa ser limpo e realocado, na sístole, ele está, respectivamente, em movimentos centrífugas e centrípetas, em busca do yang - do ativo - ou do yin - do passivo, e é só assim que a vida é possível. O mesmo se opera na vida psíquica do indivíduo. Precisamos de momentos de extroversão e introversão, dos nossos silêncios tanto quanto das nossas conversas, de excluir tudo o que não nos pertence tanto quanto de incluir o novo. A energia psíquica se manifesta entre esses dois opostos e é a partir daí que a vida pulsa.

A História
Um dos períodos mais importantes da história da China, foi o período dos "Dez Grandes", um período entre o aparecimento da espécie humana nas planícies chinesas e um grande dilúvio. O primeiro desses grandes imperadores foi Fu Hsi e o segundo Shen Nung.

Fu Hsi e Shen Nung
Fu Hsi foi, consta a lenda, o criador (ou descobridor) dos trigramas que formam o I-Ching. Ele criou apenas os oito trigramas e não 64 hexagramas que compõem o "Livro das Mutações", mas deu início a todas as concepções que embasaram um dos oráculos mais antigos do mundo. A seu modo, estabeleceu uma nova concepção do mundo e uma nova forma de se relacionar com ele, ou seja, fincou sua marca e, a partir da sua existência, haveria uma nova forma de vivenciar aquele universo, de ler o território da realidade. Foi - na concepção da neurolingüística - um criador de mapas, na concepção da mitologia local e da história do seu país, um imperador e um Herói.

Shen Nung inventou o arado e instituiu os mercados, dando início tanto à produção quanto à troca de mercadorias no território chinês.

O Imperador Amarelo
Após esses dois imperadores seguiu-se o império de Yen-ti que foi destronado por seu irmão, Huang Ti, o famoso "Imperador Amarelo". Esse magnífico e mítico imperador teve nada menos do que vinte e cinco filhos, dos quais não menos do que doze famílias feudais do período Chou se proclamaram descendentes! Huang Ti inventou o uso do fogo, queimou as florestas das montanhas, limpou as matas, incendiou os pântanos e expulsou os animais selvagens. Então os homens puderam criar o gado. Sob seu império foram subjugados os bárbaros das quatro fronteiras, alguns dos quais, conta o mito, tinham furos no peito, braços longos e olhos afundados. Ele consultou seus sábios sobre o Terraço Brilhante (Céu, astrologia) e ordenou que se fizessem tubos musicais e uma estrutura com dez sinos "para harmonizar os cinco sons".

Compreender a importância do Imperador Amarelo, para a China, é compreender a mentalidade yang chinesa e suas ramificações na compreensão e uso prático do poder. Mais adiante, em outro artigo, falaremos da mentalidade Yin, por hora, ficamos com uma passagem prática e densa dadimensão do pensamento Yang do Grande Livro do Imperador Amarelo:

"Dominando o vasto mundo, tenho apenas um propósito em vista, ou seja, manter controle absoluto e cumprir com as obrigações de Estado. Objetos estrangeiros e caros não me interessam. [...] Não tenho necessidade dos manufaturados de vosso país [...] Cabe a vós, ó Rei, respeitar minhas opiniões e manifestar ainda maior devoção e lealdade no futuro, para que, através da perpétua submissão ao nosso trono, possais assegurar paz e tranquilidade a vosso país daqui por diante. [...] Nosso Império Celestial possui todas as coisas em prolífica abundância e não carece de nenhum produto dentro de suas fronteiras. Não havia, portanto, nenhuma necessidade de importar manufaturas bárbaras de fora, em troca de nossos produtos. [...] Não esqueço a distância solitária de vossa ilha, separada do mundo por extensões imensas de mar; tampouco esqueço vossa escusável ignorância sobre os costumes de nosso Império Celestial."

A lógica da mentalidade chinesa, para quem sabe perceber os movimentos internos e externos contemporâneos tanto da sua economia como política, mentalidade e religião. Essa lógica, junto com as lógicas indiana e japonesa são modeladas e trabalhadas no treinamento "A Arte da Guerra Oriental"® para criar o melhor curso de formação de Artistas da Guerra, de artistas do conflito, o espaço onde se produzem as melhores condições possíveis para o florescer completo do artista da guerra. E o que é o Artista da Guerra?


“Um artista da guerra, nada mais é do que um artista do conflito. Aquele que manipula o conflito retirando dele soluções, idéias criativas, saídas inesperadas, úteis e principalmente, tendo conseguido seu objetivo inicial, que está sempre para além do conflito.”Renato Kress

Texto: Renato Kress
Criador dos Treinamentos "A Jornada do Herói"® e "A Arte da Guerra Oriental"®

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Os Sonhos na Jornada do Herói

Sempre me perguntam qual a importância das duas páginas, ao final da apostila da Jornada do Herói, chamadas "Pequeno caderno de sonhos, imagens, reflexões e temas recorrentes durante a Jornada". Esse 'caderno' de duas páginas para as jornadas efetuadas em finais de semana e de doze páginas para as jornadas efetuadas em dois meses, é separado em duas colunas, respectivamente 'registros verbais' e 'imagens'. Fica logo depois do fim da apostila de aula, separando as "quebras de estado" e a "bibliografia" da apostila de aula.

Qual seria a importância de anotar e verificar os sonhos, imagens e reflexões que possamos vir a ter ou desenvolver ao longo das nossas Jornadas?
O treinamento da Jornada do Herói é baseado na transdisciplinaridade entre vários ramos do saber, entre eles, a psicologia analítica - criada pelo psicólogo suíço Carl Gustav Jung - e, para ele, o sonho era "um teatro em que o próprio sonhador é cena, autor, produtor, ator, público e crítico" (Símbolos de Transformação, p.5) O sonho é o maior panorama possível sobre a nossa vida inconsciente.

Hypnos
Na Grécia Antiga o sonho era personificado na divindade Hipnos (também conhecido como 'Oneiros'), uma divindade alada que pousava sob a cabeceira da cama dos seres humanos e contava, por imagens, sobre a vida dos deuses e a relação dessa vida divina com a vida do sonhador. Segundo Corintha Maciel "Podemos considerá-lo um amigo que nos visita todas as noites e nos informa como estamos nos conduzindo em nossa vida, ou, ainda, como um repórter que nos trás notícias de nosso lado oculto."


O Sonho na Jornada do Herói
Ao longo da Jornada trabalhamos com símbolos e processos que ampliam nossa percepção acerca do que está se operando no nosso inconsciente. Seja entrando em contato com aspectos que renegamos para ressignificá-los, seja observando padrões que estavam até então imersos no "ponto cego" de nossas vidas cotidianas, seja mesmo através de sonhos e imagens que nos venham ao longo das dinâmicas e dos dias da Jornada.

O sonho é estudado aqui como veículo e criador de símbolos. Manifesta a natureza complexa, representativa, emotiva, vetorial do símbolo, assim como as dificuldades de uma interpretação. O sonho traz e cria os símbolos, que são as letras com as quais nosso inconsciente escreve as mensagens que nos importa saber sobre o mais íntimo de nossa existência.

"...símbolo da aventura individual, tão profundamente alojado na intimidade da consciência que se subtrai a seu próprio criador, o sonho nos aparece como a expressão mais secreta e mais impudica de nós mesmos. Ao menos duas horas por noite vivemos nesse mundo onírico dos símbolos. Que fonte de conhecimentos sobre nós próprios e sobre a humanidade, se pudéssemos sempre recordá-los e interpretá-los." - Frédéric Gaussen

Sonhos e seus estudiosos
Seguem algumas interpretações do que seja o fenômeno dos sonhos, sob a ótica de diferentes autores.

Para Sigmund Freud "o sonho é a expressão, ou a realização, de um desejo reprimido"

Para Carl Gustav Jung "o sonho é a auto-representação, espontânea e simbólica, da situação atual do inconsciente"

Para J.Sutter "o sonho é um fenômeno psicológico que se produz durante o sono, constituído por uma série de imagens cujo desenrolamento representa um drama mais ou menos concatenado"

Para Henry Amiel "o sonho é o domingo do pensamento"

Para Roland Cahen "...o sonho exprime as aspirações profundas do indivíduo e, portanto, será para nós uma fonte infinitamente preciosa de informações de toda ordem"

O que podemos retirar dessas definições é que o sonho independe da vontade e responsabilidade do sonhador. Sua dramaturgia noturna é espontânea e incontrolada. Nele, a consciência das realidades se oblitera, o sentimento de identidade se aliena e se dissolve.

Panorama da História do Sonho pelo mundo
O Egito Antigo atribuía aos sonhos um valor sobretudo premonitório: 'O deus (Amon-Rá) criou os sonhos para indicar o caminho aos homens, quando esses não podem ver o futuro'. Sacerdotes interpretavam nos templos os símbolos dos sonhos, segundo chaves interpretativas transmitidas pelos deuses. A oniromancia, ou a adivinhação por meio dos sonhos, era praticada em todos os lugares.

Para os negritos das ilhas de Andaman (Andamã), os sonhos são produzidos pela alma, que é considerada como a parte maléfica do ser. Sai pelo nariz e realiza ora do corpo as proezas de que o homem toma consciência em sonho.

Para todos os índios da América do Norte, o sonho é o signo final e definitivo da experiência. Segundo o mitólogo romeno Mircea Eliade "Os sonhos estão na origem das liturgias, estabelecem a escolha dos sacerdotes e conferem a qualidade de xamã, é deles que provêm a ciência médica, o nome que se dará às crianças e os tabus, eles ordenam as guerras, as caçadas, as condenações à morte e a ajuda a ser ministrada; só eles compreendem a obscuridade escatológica. Enfim o sonho confirma a tradição: é o selo da legalidade e da autoridade.

Para os Bantos do Kasai (bacia do Congo), certos sonhos são produzidos pelas almas que se separam do corpo durante o sono e vão conversar com outras almas, vivas ou mortas. Esses sonhos têm caráter premonitório referente à pessoa ou então podem consistir em verdaeiras mensagens dos mortos aos vivos, que interessam a toda a comunidade.

A classificação dos sonhos
As pesquisas analíticas, etnológicas e parapsicológicas dividiram os sonhos noturnos em seis categorias:

1. O sonho profético ou didático: trata-se de um aviso, mais ou menos disfarçado sobre um acontecimento crítico, passado, presente ou futuro; sua origem é frequentemente atribuída a uma força celeste.

2. O sonho iniciatório do xamã ou do budista tibetano de Bardo-Todol: é um sonho carregado de eficácia mágica e destinado a introduzir o homem num outro mundo por meio de um conhecimento e de uma viagem imaginários. Nos dois casos pode vir a incorporar um primeiro estágio de negação da carne-matéria. Nos dois casos, tanto para o xamã quanto para o monge budista, isso pode ser uma fase para um renascimento do sujeito em novo plano da experiência humana.

3. O sonho telepático: que estabelece comunicação com o pensamento e os sentimentos de pessoas ou grupos distantes. Muitos desses sonhos foram descritos por escritores e pessoas comuns antes da primeira e segunda guerra mundiais, por exemplo.

4. O sonho visionário: que transporta ao que H. Corbin chama de 'o mundo das imagens', e que pressupõe, no ser humano, num certo nível de consciência, poderes que nosa civilização ocidental talvez tenha atrofiado ou paralisado, poderes sobre os quais se encontram testemunhos entre os místicos iranianos. Neste caso não se trata de presságios ou de viagens, mas de visão.

5. O sonho pressentimento: que pressente e privilegia uma possibilidade entre mil outras.

6. O sonho mitológico: que reproduz algum grande arquétipo e reflete uma angústia ou uma potencialidade fundamental e universal.

Todos esses tipos de sonhos são passíveis ao longo da Jornada do Herói. Pois o material que trabalhamos são símbolos, e as "escavações internas" que operamos ao longo da Jornada, principalmente ao longo da Katábasis, rearranjam os mosaicos internos de nossa psique possibilitando que novas percepções venham à tona, percepções que nosso inconsciente nos comunicará pela sua linguagem natural, a linguagem dos símbolos.

Exemplos de sonhos de Heróis durante a Jornada
Tomei a liberdade de trocar os nomes dos sonhadores para resguardar suas intimidades.

- Estava numa festa com muitos conhecidos, um amigo de infância - que eu não via a mais de vinte anos - me chamou para dançar. No meio da dança começamos a beber e ele me contou que eu precisava girar menos, porque daquele modo iria cair mais cedo ou mais tarde. Quando acordei estava zonza, completamente desbaratada. Levantei e senti que eu precisava arrumar minha mesa de trabalho e por algum motivo não parei até encher dois grandes sacos de lixo com papéis velhos que eu guardava não sei porquê. minha mente clareou depois daquilo. - Márcia

- Sonhei que estava numa biblioteca subterrânea que subia para um morro, numa colina. Nessa colina vi um ser muito magro fazendo piruetas e acrobacias na beira de um abismo. Não consegui me aproximar dele, mas conversamos. Ele estava confiante e sorrindo e acabou pulando no abismo e eu tenho certeza de que ele não morreu. (Eu escrevi um conto sobre esse sonho de uma heroína aqui) - Lígia

Os sonhos e a Jornada
Usamos as imagens simbólicas que aparecem nos sonhos de nossos heróis como formas de pesquisa das informações que nosso incosciente julgue que sejam tão importantes a ponto de ele querer que nós nos dediquemos a conhecê-los melhor. Orientamos, na Jornada do Herói, sobre as formas como nossos Heróis e heroínas possam e devam anotar e pesquisar sobre seus sonhos, para que os avisos sejam percebidos, que as interpretações sejam possíveis e que os pedidos de nosso mundo interior não sejam negligenciados por nosso dia a dia celerado, nesse tempo que consome todos nós.

Renato Kress
Diretor do Instituto ATENA
Criador do treinamento A Jornada do Herói
Antropólogo e Cientista Político pela PUC-Rio, Trainer em Programação Neurolingüística pelo Deutsch Verband für Neurolingüistisches Programmieren e pelo International Association of NLP Institutes, pós-graduando em Psicologia Analítica pelo IBMR.

sexta-feira, 7 de outubro de 2011

O poder da narrativa: Medo midiático e a Jornada do Herói

"Qualquer um pode fazer história, só um grande homem pode escrevê-la." - Oscar Wilde, Aforismos

Quem observa os observadores?
A vida cotidiana é vivida numa sucessão interminável de fatos, dados, datas e acontecimentos. Vivemos sobrecarregados, atordoados e minimizados por televisão, computador, facebook, twitter, jornais, revistas, imagens e representações de uma realidade que já quase não vivemos senão por projeções. Projetamos nosso presente e deixamos que ele se alastre por diversos instantes que cronologicamente pertencem ao passado e a uma expectativa de futuro, de forma que viver efetivamente o presente é quase impossível hoje em dia.

Fuga do agora, vida em projeção
Não espanta que o budismo seja uma das filosofias religiosas que mais crescem hoje em dia, justamente porque prega a vida presente, o momento presente o aqui e agora que somos educados pela mídia a negligenciar constantemente. É impossível agir no passado ou no futuro, eu não posso, agora, ir dormir mais cedo ontem ou  resolver um problema semana que vem. Não é metafísica, é a constatação mais prática e óbvia possível! Só parece metafísica porque estamos submersos numa cultura de projeção, anestesiados, sem contato com o presente, incapacitados de fazermos nossa própria história. Há um jogo perverso de poder aí e é dele que trataremos nesse artigo.


Um mundo de coadjuvantes
Exercita-se, diariamente, a idéia de que devemos nos informar sobre o que ocorre ao nosso redor e, na nossa cultura, a forma mais corriqueira de informar-se é ler um jornal, revista ou ver o noticiário na TV. É apenas uma idéia cultural, não é uma realidade nua e crua. Se realmente nos atermos aos interesses em jogo nesses veículos de comunicação, perceberemos outras lógicas operando no que chamamos de "jornais", lógicas que cabe sempre a cada um, individualmente, estar a par para poder conscientemente concordar ou discordar, aceitar ler ou ignorar, manter sua assinatura vitalícia do jornal ou buscar fontes alternativas cujos valores sejam mais coerentes com os teus valores enquanto indivíduo.

A memória pessoal e a memória sobressalente
Mas antes de tudo é preciso conhecer os interesses que movem esses meios de comunicação e, para isso, podemos fazer da mesma maneira como fazemos com as pessoas ao nosso redor, observar suas ações ao longo do tempo para determinar a trajetória do caráter delas. Usar a nossa memória para analisar os veículos que se propõem a ser uma "memória sobressalente" sobre a nossa sociedade e cultura. Não é um exercício fácil, mas como tudo o que diz respeito à Jornada do Herói, o fácil não tem mérito, não tem esforço, não imprime uma marca densa na memória, que é o que queremos.

Mudança, direção e sentido
"A história humana é o resultado do conflito dos nossos ideais com as nossas realidades, e a acomodação entre ideais e realidades determina a evolução peculiar de cada nação." - Lyn Yutang, Com Amor e Ironia

 A vida é um processo de contínua mudança. Nascemos, crescemos, envelhecemos e morremos. O processo pode ser lento o suficiente para que tenhamos a impressão de uma consciência mais ou menos rígida de quem somos e do que somos, mas em efeito essa consciência muda com o tempo e o espaço.

Representamos o que na sociologia se convencionou chamar de "papéis sociais" distintos ao longo da vida e em diferentes meios, mas o "papel social", o que Jung denomina como "persona", faz parte e é também uma representação coordenada, socializada, do self, de nosso eu mais íntimo. Então se a persona muda essa mudança reflete também o grau de espectro aceitável dentro das manifestações possíveis do self. Ou seja: eu me adapto à sociedade e essa adaptação mostra também um pouco das minha escolhas, da minha autonomia e natureza íntimas. Minha "persona" é parte do meu "self", a escolha que efetuo sobre a parte minha que irá se aventurar e se expor ao mundo fala também de mim, do meu eu que escolhe e do meu eu que se esconde.

Quem é o narrador? Quem dá o sentido?
O que importa para compreendermos como a Jornada do Herói se implica no momento histórico que vivemos, com a disseminação do medo coletivo e difuso televisionado diariamente, é compreender como a autonomia do indivíduo é roubada, como o seu caráter libertário, sua liberdade, é cerceada pelos mecanismos que buscam deter o poder da narrativa, o poder de doar o sentido ao mundo.

"A história é o pesadelo do qual estamos tentando acordar." - James Joyce
Existe uma citação que diz que "A história é contada pelos vencedores" e também é uma questão prática, nada filosófica ou metafísica: quem permanece vivo vai lá e escreve, quem permanece no poder tem condições de se fazer ouvir mais e melhor. O que me leva a pensar, e se invertêssemos essa dinâmica? "Quem se faz ouvir mais e melhor permanece no poder", será que isso é verdade?

Quem conta a história dá o seu enfoque, dá a sua versão, enfatiza o que interessa e o que percebe. Aquilo que mais me atinge num determinado acontecimento vai ser aquilo de que mais me lembrarei quando relatar o acontecimento a alguém, sempre! O enfoque depende das minhas sensibilidades e interesses. Por isso sempre convido meus alunos a compreender os interesses dos que contam as histórias, principalmente quando eles vendem a ideia de que estão contando histórias "reais" ou por um prisma "imparcial".

Boicotes e ênfases, jogos de poder orquestrados
Penso sobre os institutos de pesquisa científica do Rio de Janeiro, as universidades, as ongs, oscips que realmente trabalham sério, diariamente, para construir um mundo mais digno e que só saem na televisão quando são alvos da "violência", do "pânico generalizado", do "terror" e outras das palavrinhas chaves que podemos contar aos milhares nos diários informativos impressos ou televisionados. Há um recorte aí. Há um silêncio programado sobre o que temos de bom, uma ênfase perversa em construir um discurso do mal crescente. Essa ênfase custa dinheiro e todo dinheiro é gasto com uma meta. A tinta do jornal, o combustível dos caminhões que levam eles a todos os bairros pela manhã, o salário dos jornalistas, o aluguel dos prédios de redação, o horário na TV, os ternos impecáveis dos apresentadores não são de graça. São caros e ninguém gasta dinheiro a troco de nada. Há um interesse aí e esse interesse recorta preferencialmente o medo.

Medo, manipulação e poder
"Um dos efeitos do medo é perturbar os sentidos e fazer com que as coisas não pareçam o que são." - Miguel de Cervantes, Dom Quixote


Manter uma população com medo é manter uma população com o que em psicologia se chama de "rebaixamento do nível mental". A capacidade cognitiva do sujeito sob o domínio do medo se reduz às possibilidades ditadas pelo cérebro chamado "reptiliano": ficamos sujeitos a pensamentos simples e rasteiros , prisioneiros da ideia principal do cérebro reptiliano ("fugir ou atacar") ficamos submersos em uma lógica dual como maniqueísmos e bipolaridades de todo o tipo como "bom-mau", "bem-mal", "herói-vilão", "nós-eles", "certo-errado" e nossa capacidade de organização e discernimento é rebaixada a quase zero. O mundo é mais complexo que os binômios "favela-asfalto", "dentro-fora", "hétero-homo" ou "homem-mulher", mas numa atmosfera permeada pelo medo é quase impossível perceber isso.

"O medo é um dos soberanos da humanidade. É o que possui o maior dominio de todos. Ele faz-nos embranquecer como velas. (...) Tem se criado mais medo do que qualquer outra coisa. Como força modeladora, não perde para a própria natureza." - Saul Bellow, Henderson, o Rei da Chuva.

Diante desse quadro nos é vendida (mesmo! eles cobram por isso!) a compreensão de que há um "quarto poder" em ação, a grande imprensa. Responsável, entre outros, por contar a história, por dar um sentido uma ênfase e um enfoque a essa história, por apontar "heróis" e "vilões", "culpados" e "inocentes", por colocar-se no papel da vítima indefesa que, através da própria vitimização, justifica um determinado posicionamento político cada vez mais agressivo, excludente e violento.

Quem tem medo de quê?
"O medo é o pior dos conselheiros" - Alexandre Herculano, Apontamentos para a história dos bens da Coroa e dos forais.

Creio, e talvez seja uma jogada um tanto quanto esperançosa, que o maior medo que pode haver é o medo do potencial criativo do ser humano. Todo o mundo que aí está, tudo o que hoje obedecemos e temos como verdade absoluta foi criado por homens. É o que o sociólogo Émile Durkheim chamava do "poder dos mortos sobre os vivos", o poder dos que primeiro criaram as regras e fizeram elas valer, da forma que for.

Quem narra, quem é narrado, quem dá o sentido?
O maior de todos os medos, a meu ver, é o medo que todos os sistemas que detêm algum poder têm de que esse potencial criativo do ser humano - a capacidade de ser o narrador da sua própria história - seja descoberto e ampliado. E se amanhã a "sensação de insegurança" veiculada pela mídia acordasse com uma certa "sensação de insegurança"? Se ela não fosse mais tão "óbvia". Se ao invés de ouvirmos à televisão desligássemos e ouvíssemos o som das ruas, se conversássemos com nosso vizinho ao invés de olharmos ele como "o outro", "o desconhecido", como uma ameaça em potencial? E se abandonássemos o papel de espectador e assumíssemos uma postura de protagonistas das nossas histórias? E se criássemos nossos próprios sentidos, e se fôssemos nossos próprios heróis?

"A única coisa de que devemos ter medo é o próprio medo." - Franklin Delano Roosevelt, Discurso de posse.

Texto: Renato Kress
Diretor do Instituto ATENA e
Criador do treinamento "A Jornada do Herói®"
Conheça mais do treinamento A Jornada do Herói®